Todo jornalista tem um entrevistado dos sonhos. Aquele personagem com o qual gostaria de passar algum tempo fazendo perguntas e jogando conversa fora. Alguém que fizesse parte de seu imaginário particular e que tivesse histórias impagáveis para contar. Pois bem. O meu entrevistado dos sonhos, durante muito tempo, foi o músico Sergio Mendes. Felizmente, realizei o meu sonho em 2015 – e descobri, durante a entrevista, que ele era ainda mais divertido do que imaginava.
Infelizmente, Mendes foi para o andar de cima nesta semana, deixando um legado espetacular: 14 canções emplacadas na lista das cem mais vendidas da Billboard, três prêmios Grammy e uma indicação ao Oscar. É o músico brasileiro de maior sucesso nos Estados Unidos.
Seu cartão de visitas foi a música “Mas que nada”, uma regravação do sucesso nacional de Jorge Ben, que chegou ao topo das paradas americanas mesmo cantada em português. Mas ele tem outros clássicos, alguns em em inglês e outros em sua língua natal. “For Me”, por exemplo, é a versão de “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. O arranjo, elegante e econômico, nada tem a ver com a gravação original, que ganhou o primeiro festival de música brasileira na voz de Elis Regina. O resultado, no entanto, é maravilhoso.
A sólida carreira que fez nos EUA teve início logo após o início do governo militar, em 1964. A ditadura tinha apenas um mês de vida quando seu primeiro filho nasceu. Mendes, então, mandou um telegrama para o amigo Wesley Duke Lee, um dos maiores artistas plásticos do país. A missiva dizia o seguinte: “Rodriguinho barra limpa, primeiro realista mágico de Niterói, avisa ao tio Lee que a ordem do dia é fralda larga e leite morno”.
Os militares interceptaram a mensagem e não gostaram do que leram. “Acharam que era um código revolucionário e fiquei preso duas semanas. O pior é que, quando invadiram a casa do Lee, acharam um busto de gesso do pai dele, que era a cara do Lênin. Como se explica uma coisa dessas?”, recordou-se às gargalhadas.
Tive a oportunidade de checar com ele uma história que ouvia há anos sobre ele e o percussionista Laudir de Oliveira (que tocou com a banda Chicago e os irmãos Jackson, com Michael à frente). Laudir tinha viajado com Mendes em direção a Los Angeles. Quando o avião estava chegando, viu pela janela um entroncamento de estradas, cheio de cruzamentos.
Laudir começou a carreira tocando atabaque em terreiros de umbanda em sua terra natal, Niterói (a mesma de Sergio Mendes). Ele olhou megaencruzilhada, cutucou Mendes e disse: “Serginho, com uma encruzilhada dessas, uma galinha preta não serve para fazer um trabalho bem-feito”, arriscou. “Com tanto cruzamento, só um cordeiro para resolver a parada”.
Pouca gente sabe, mas foi ele um dos responsáveis pelo sucesso de Harrison Ford no cinema. Ford era um carpinteiro famoso em Beverly Hills e foi chamado pelo músico brasileiro para construir um estúdio de gravação na sua casa de Encino, Califórnia. Quando o diretor e produtor George Lucas o chamou para fazer alguns armários em sua casa, Ford deu justamente Sergio Mendes como referência. Após conhecê-lo, Lucas ofereceu a Ford fez uma ponta em American Grafitti. Em seguida, lembrou do ator quando precisava escalar alguém para viver o piloto espacial Han Solo na trilogia Guerra nas Estrelas.
A Bossa Nova teve dois grandes palcos em seu nascedouro, ambos em Copacabana. Um foi o apartamento dos pais de Nara Leão, no qual se faziam saraus cantantes. O outro foi um beco que saía da rua Duvivier e abrigava boates minúsculas, onde havia shows ao vivo.
Foi nesse local que Mendes começou sua carreira profissional aos 17 anos, quando foi chamado para substituir um amigo pianista que ficara doente. O lugar ficava ao lado de prédios residenciais e os moradores sempre reclamavam da arruaça que os músicos faziam ao conversar em voz alta durante a madrugada – e, não raro, arremessavam garrafas para atingir lá embaixo aqueles que insistiam em falar alto.
Mendes apelidou o local de “beco das garrafadas”. Com o tempo, o apelido foi encurtado e imortalizado como o “Beco das Garrafas”, que abrigava boates como “Little Club”, “Bottles”, “Ma Grife” e “Bacarat”. Em 2014, duas delas (“Little Club” e “Bottles”) foram reabertas no mesmo local. É possível visitá-las e imaginar como era a época em que Mendes, Elis Regina, Wilson Simonal, Baden Powell e Sylvia Telles figuravam como atrações diárias. Uma época de ouro, um tempo especial que não voltará jamais.
Valeu, Sergio Mendes, grande mestre. Toda a turma do Beco das Garrafas estava à sua espera, para jam sessions celestiais de bossa nova. Sua obra será eterna e admirada por várias gerações. Que você vá em paz.