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Shackleton, o perdedor mais inspirador de todos os tempos

Como um explorador que deixou de cumprir sua missão se tornou o maior exemplo de liderança, superação e trabalho de equipe

No sábado (5), submersíveis operados remotamente a partir do quebra-gelo sul-africano Agulhas II localizaram e filmaram o naufrágio do navio polar Endurance, a 3.008 metros de profunidade, no Mar de Weddel, porção do Mar Antártico voltada ao Atlântico Sul. Esmagado definitivamente pelo gelo em 27 de outubro de 1915, a embarcação foi localizada após 107 anos e exatamente dois meses após o centenário da morte de Ernest Shackleton (1874-1922), o segundo mais prestigiado explorador dos polos – atrás do norueguês Roal Amundsen, o primeiro a atingir o Polo Sul. Ainda com parte de sua estrutura de madeira intacta e repleto de vida marinha, o Endurance deveria levar uma equipe para o que seria a Expedição Transantártica Imperial, que cruzaria o continente austral por terra. No caminho, fariam mapeamentos e estudos geológicos. Deu tudo errado. E desse fracasso nasceu um personagem maior que a vida.

Presos em uma banquisa, o explorador Ernest Shackleton e sua equipe também estavam no limbo por causa das condições políticas. No mar desde 8 agosto de 1914, mal sabiam que o conflito europeu iniciado no final de julho viraria a Primeira Guerra Mundial, com os britânicos entrando para ajudar os franceses seis dias depois de zarparem. Sua equipe de 28 homens ficou sem contato com a civilização por 1 ano, 8 meses e 25 dias, na mais extraordinária jornada de superação, trabalho de equipe e motivação no cenário mais severo registrado na história moderna. Mesmo com frio abaixo dos -30ºC, fome e até um tsunami surgido do nada, o Chefe não perdeu um homem. Após cruzar centenas de quilômetros sobre o gelo, ele trouxe todos para terra, organizou abrigos, achou comida, motivou, planejou e adaptou botes para ir em busca de socorro atravessando o mar mais perigoso do mundo.

De volta ao Reino Unido, foi esquecido no turbilhão da guerra. Mas por um breve período se tornou um grande e bem remunerado palestrante, detalhando como manteve seu grupo coeso e focado. Shackleton foi um predecessor desses coachs que estão por aí – só que com legítima vivência. Dedicado aos negócios, fez alguma fortuna até ser convocado para outra expedição. Detalhista e mais preocupado com o bem-estar alheio, morreu de um ataque cardíaco nas Ilhas Geórgia do Sul, enquanto se preparava para explorar o Mar de Beaufort. Sua morte e seu segundo fracasso deveriam tê-lo jogado no esquecimento – a expedição jamais atingiu seus objetivos por causa de problemas técnicos do navio empregado, o Quest. Nada disso.

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A figura lendária de Shackleton foi resgatada pelo mundo corporativo a partir da segunda metade dos anos 1990, mas acabou superada pelos gurus motivacionais da tecnologia e das finanças. Bobagem. Desde os anos 1960, a Nasa usa seus métodos de gerenciamento de crise para treinar seus astronautas. Com o Velho Cauteloso – um de seus apelidos – sempre havia mais em jogo. Líder nato, o “viking com coração de mãe” extraía o melhor de todos – até de um passageiro clandestino que fez de auxiliar. Tanto que em sua última missão foi seguido por gente que sequer havia recebido o pagamento pela Expedição Transantártica Imperial, encerrada cinco anos antes. Além de sua capacidade e charme solidário, havia o apelo que balança qualquer coração inquieto. E isso atraiu os caras certos.

Tente não se arrepiar coma descrição de vaga mais desafiadora publicada em um jornal britânico. “Procura-se homens para uma viagem perigosa, pequenos salários, frio intenso, longos meses de completa escuridão, constante perigo, retorno seguro duvidoso, honra e reconhecimento em caso de sucesso”, seguido de seu nome, já conhecido, e um endereço. Há discordância se o anúncio foi veiculado mesmo no The Times, em 1913, ou se é referente a uma expedição anterior – o mesmo se existiu. O certo é que, na dúvida, se a versão é melhor que os fatos, vamos nessa. O texto é sob medida para tudo que ocorreu.

Vamos comparar. Em 1898, o médico americano Frederick Cook (1865-1940) descreveu assim a tripulação do Belgica nos mares gelados do sul: “A maioria de nós a bordo ficou com os cabelos completamente grisalhos em dois meses, embora poucos tenham mais de 30 anos. Nossos rostos estão abatidos e há falta de bom humor, animação e esperança em nossa disposição de espírito que, por si só, é um dos incidentes mais tristes de nossa existência”. Cook era psiquiatra. No Endurance, após cinco meses imobilizados no gelo, o fotógrafo australiano Frank Hurley (1885-1962) escreveu em seu diário, em 21 junho de 1915: “A [cabine] billabong está com uma atmosfera poética. Macklin [Alexander, o cirurgião, 1889-1967] está em seu beliche escrevendo versos e estou fazendo o mesmo. McIlroy [James, cirugião, 1879-1968] está preparando um traje de dança decotado, enquanto tio Hussey [Leonard, meteorologista, 1891-1964] está sendo importunado por candidatos que insistem em ensaiar acompanhamentos em seu banjo”.

A opinião de quem conheceu

Para não esticar demais, vão aqui algumas definições sobre esse admirável líder, cujos exemplos servem tanto para lições de comando militar quanto para investidores e chefes de escoteiros.

“Seus métodos de disciplina eram muito justos. Ele não acreditava em disciplina desnecessária”

William Bakewell, marinheiro

“Nunca entrou em pânico em qualquer emergência”

Walter How, marinheiro

“Não importa o que aconteça. Está sempre pronto para mudar os planos e fazer novos. E nesse meio tempo, dá risadas e faz piadas, mantendo todos animados”

Frank Worsley, capitão do Endurance

“Eu, doutor McIlroy e o primeiro maquinista esfregamos o chão como fazemos em todas as quarta e sábados”

Harry McNish, carpinteiro

“Eu virar de costas e chorar”

Um baleeiro norueguês em seu inglês macarrônico sobre a chegada de Shackleton à Geórgia do Sul em busca de regate

“Se eu estiver em um buraco e quiser sair, dêem-me Shackleton todas as vezes”

Apsley Cherry-Garrard, explorador polar britânico

Perguntado sobre como todos sobreviveram, o segundo imediato do Endurance, Lionel Greenstreet [1889-1979], o mais longevo dos aventureiros, respondeu seco: “Shackleton”. Sim, o líder e suas escolhas de pessoal. De acordo com o capitão, Frank Worsley (1872-1943), o próprio Greenstreet refletia bem o tipo de otimista que o Chefe queria ao seu lado na pior hora, considerando o jovem oficial “esplêndido, nunca perdendo a esperança e sempre pronto para fazer alguma horrível piada de marinheiro”.

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