Em uma cena do filme “Corpos Ardentes”, o advogado Ned Racine (William Hurt) nota a presença de Matty Walker (Kathleen Turner, em seu primeiro papel para o cinema). Ele mora em Miranda Beach, perto de São Francisco, Califórnia, e está suando em bicas, pois a cidade passa por uma onda de calor insuportável. Para puxar conversa com Matty, Ned diz: “Você pode ficar ao meu lado se quiser, mas não vamos falar sobre o calor”. Ela gosta da cantada e dá corda, iniciando um diálogo afinado e inteligente, escrito e dirigido por Lawrence Kasdan (que fez os roteiros de Indiana Jones e de Guerra nas Estrelas).
O filme todo se passa sob uma temperatura desértica e o calor é um assunto recorrente entre os personagens (curiosamente, a produção foi rodada durante o inverno e os atores precisaram fingir que estavam se sentindo calorentos). Me senti exatamente assim durante essa semana. Todo mundo só falava sobre as altas temperaturas, o El Niño atípico e efeitos do aquecimento global.
Num dia desses, estava em meu carro, esperando o sinal abrir. Do conforto do meu ar-condicionado, vi uma placa que anunciava 39 graus centígrados. Na calçada do outro lado, havia três homens esperando para atravessar. Um deles estava de terno e gravata, mas não parecia incomodado. Ao seu lado, um rapaz de camiseta demonstrava sofrer mais os efeitos da onda de calor, com uma careca vermelha e suadora, prestes a sofrer uma insolação. Ao seu lado, um senhor com um guarda-chuva aberto, fazendo o papel de sombrinha – uma cena que não via há muito.
Hoje ainda padeceremos do clima abrasador. Mas amanhã os termômetros vão abaixar e teremos uma pausa em nosso sofrimento.
O fato é que adoramos falar do tempo. Trata-se de um quebra-gelo favorito para puxar assunto com desconhecidos. Mas gostamos muito mais é de falar mal do clima. Se está quente, desejamos o frescor do outono. Se estamos no auge do inverno, tiritando, sonhamos com um dia ensolarado na praia. Se está nublado, queremos sol. Se há sol demais, ansiamos por uma sombrinha. Parece que nunca estamos satisfeitos com nossa conjuntura climática.
Ocorre que os extremos nos afetam demais e nos deixam irritados. Poucas vezes em minha vida me senti tão desconfortável como nesses dias. O calor senegalês, somado ao trânsito insuportável, fez a vida em São Paulo mais complicada.
Mas e o que dizer da sensação térmica registrada no Rio de Janeiro, que ultrapassou os 58 graus centígrados?
Essa onda de calor, que promete ser ainda mais radical em 2024, é uma “wake up call” para os negacionistas que insistem ser o aquecimento global uma narrativa de esquerda. Enquanto tivermos pessoas que ficam negando o óbvio, será difícil combater as razões que criam situações caóticas com o tempo, de norte ao sul do país.
Está mais que na hora de colocar as mentes mais brilhantes do mundo para criar uma tecnologia que consiga neutralizar (ou pelo menos mitigar) os efeitos da emissão de carbono na atmosfera. A agenda ambientalista não é apenas assunto de militantes. Deve ser defendida por todos nós – e isso inclui os empresários, até porque haverá muito dinheiro a ser captado neste mercado de redução da poluição terrestre.
Não vamos deixar esse assunto morrer com a onda de calor. Temos filhos e muitos de nós têm netos e bisnetos. Precisamos preservar esse planeta para eles. É o mínimo que podemos fazer. Portanto, chega de polarizar. Vamos discutir o problema sem preconceitos e começar a resolver essa questão de uma vez por todas.
P.S.: cansou do calorão? Não se preocupe: na segunda-feira, a temperatura vai ficar entre 11 e 14 graus centígrados. É tempo suficiente para que todos reclamem do frio e peçam a volta do calor inclemente…