Na época em que tudo era analógico, ler ou ouvir música eram atividades que precisavam de concentração. Lembro que meu pai tinha um ritual aos domingos pela manhã. Ele se sentava em uma poltrona bergere de couro marrom e se cercava de jornais, revistas e livros. Ficava absorto por horas, cercado de quilos de papel – e todos na casa respeitavam aquele tempo em que ele se trancava em seu mundo de letras.
Quando cresci, meu comportamento foi mais ou menos o mesmo. Me isolava de alguma forma e minha ligação com as publicações não estava apenas no meu cérebro: também me conectava com os livros através do cheiro do papel, da tinta e do contato dos meus dedos com a superfície das páginas. Aquele era um momento em que eu me desligava de tudo e criava um cineminha em minha cabeça.
Curiosamente, nunca pensei no rosto dos personagens que faziam parte do universo imaginário que surgia em minha mente. Em questão de poucas páginas, os rostos iam aparecendo em minha cabeça. Às vezes, feições aleatórias, formadas a partir de descrições ou pistas dadas pelos autores. Em outras ocasiões, emprestava a face de gente famosa.
Tomemos como exemplo o detetive Sam Spade, que aparece em alguns livros de Dashiel Hammet, como “O Falcão Maltês”. Essa história foi adaptada por Hollywood, com Humphrey Bogart (imagem) dando vida a Spade em um dos maiores clássicos do cinema noir. Mas, na minha cabeça, eu enxergava o cantor Huey Lewis, que fez muito sucesso com “Power of Love”, trilha sonora do filme “De Volta para o Futuro”. Por quê? Não tenho a menor ideia. Talvez precisasse de uns dois meses de terapia para descobrir a razão pela qual escolhi ligar esse personagem a uma celebridade não muito conhecida.
Quando minha leitura é interrompida, demoro alguns minutos para pegar embalo e enxergar o cenário e os personagens que imaginei. E isso, nos dias de hoje, é um problema seríssimo.
Ao contrário do que acontecia na época analógica, somos interrompidos com muita frequência durante a leitura. O celular é uma fonte contínua de interrupções – que podem ser instantâneas ou demorar minutos. São mensagens, notícias, avisos de bancos. Ou, raramente, ligações telefônicas.
Além disso, o livro de papel deu lugar – pelo menos no meu caso – a publicações digitais, que ficam armazenadas no Kindle. Com isso, a experiência sensorial (o olfato e o tato) foi para o espaço. O aparelhinho é, ainda, bastante leve e iguala todos os livros do mundo no quesito peso. Tanto “A Montanha Mágica” (Thomas Mann), de 856 páginas, quanto “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Machado de Assis), com 356 páginas, pesam a mesma coisa em versão digital: cerca de 200 gramas.
Apesar das dificuldades, não desisto da leitura. Trata-se de um momento de refúgio mental, no qual minhas células do cérebro se regeneram e as ideias surgem a galope. A ficção tem esse poder sobre as mentes: as fronteiras de nosso pensamento são ampliadas e a criatividade aflora.
Talvez o gatilho de tudo isso seja o festival de emoções que uma boa história cria dentro dos leitores. “Ficção não é necessariamente sobre o que você sabe, é sobre como você se sente. Essa é a verdade sobre ficção, e a outra verdade é que toda ciência é uma ferramenta, e usamos nossas ferramentas não para atualizar o que sabemos, mas para descobrir como nos sentimos”, disse a escritora Margareth Atwood, autora de “O Conto da Aia”.
É isso. A cada leitura é possível descobrir novos sentimentos ou reviver antigas emoções. E, de brinde, destravar a própria criatividade.