O filme “Não Olhe para Cima” (“Don’t Look Up”) foi uma sensação nas redes sociais. Quase todos os meus amigos no Facebook e Instagram (os de verdade e aqueles que nunca vi mais gordos) postaram comentários e resenhas. A película, que reúne um elenco estelar, é quase uma unanimidade. É elogiada frequentemente – e inúmeros paralelos podem ser traçados a partir do enredo.
Como toda a sátira, a obra de Adam McKay funciona bem como catarse, produzindo sorrisos e gargalhadas em diversos momentos que parecem refletir nossa realidade (não importa o país em que vive o telespectador). McKay ganhou notoriedade no humorístico “Saturday Night Live”, onde conheceu o comediante Will Ferrell e o dirigiu diversas vezes no cinema. É dele, inclusive, um filme bastante interessante: “Vice”, baseado na vida de Dick Cheney, companheiro de chapa de George W. Bush.
“Não Olhe para Cima” é um bom filme, mas talvez não seja a obra-prima a qual muitos se referem. Comecemos pelo roteiro, de autoria do próprio McKay, que é um tanto arrastado. O enredo é bastante maniqueísta e todos, menos os que estão envolvidos com a missão de mostrar à sociedade que a Terra será atingida por um cometa de nove quilômetros de extensão, parecem agir como idiotas.
Isso inclui o empresário vivido por Mark Rylance, ator que ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante por Ponte dos Espiões em 2016. Seu personagem, Peter Isherwell, parece ter se tornado um multibilionário por conta de um verdadeiro milagre, tamanha é sua vaidade, arrogância e incapacidade. Todo empresário – do dono de um botequim a um Jeff Bezos da vida – sabe correr riscos. Mas nenhuma pessoa em sã consciência colocaria a vida na Terra em risco por conta de uma ambição desmedida (temos que lembrar, no entanto, que sátiras são criadas a partir de exageros da realidade).
O filme também coloca o dedo em uma ferida aberta em nossa sociedade – o negacionismo.
Muito vão confundir esse conceito com o radicalismo de narrativas. Ou seja, ao negar o que diz o outro lado, está se praticando o negacionismo. Não se trata, porém, de uma simples discussão sobre opiniões. O que seria, então, o negacionismo? Uma definição comumente aceita é a de recusar e negar uma realidade cientificamente comprovada.
Na idade média, por exemplo, a Igreja coagiu as autoridades e prendeu o cientista Galileu Galilei, que defendia o sistema heliocêntrico, baseado em seus estudos. Os religiosos, como se sabe, acreditavam que a Terra era o centro do Universo. Foi provavelmente um dos primeiros exemplos de negacionismo da História – e, neste caso, a ciência perdeu o primeiro round.
Isso também ocorre no mundo de hoje — especialmente quando misturamos fatores emocionais com constatações científicas. Lembra-se das milhares (se não milhões) de pessoas que insistiram na tese de que não havia uma pandemia? Ou que as mortes de 2020 tinham sido infladas por médicos que queriam impor a narrativa da Covid?
Em “Não Olhe para Cima”, o negacionismo se dá em duas partes. A primeira ocorre com o questionamento que se faz aos cálculos que mostram a trajetória do cometa que vai colidir com a Terra. A segunda surge quando o bilionário Isherwell convence a presidente americana, vivida por Meryl Streep, a chamar de volta a esquadra de foguetes enviada para explodir o corpo celeste. Sua tese é a de que o cometa pode ser quebrado em várias partes pequenas e que seu conteúdo mineral pode ser explorado pelos EUA. Mas esse procedimento só poderia ser feito em um ponto muito próximo de nosso planeta – um risco que só imbecis aceitariam correr.
Alguns jornalistas, como Elio Gaspari, fizeram um paralelo entre a película de Adam McKay e “Dr. Strangelove”, de Stanley Kubrick. Trata-se de uma boa comparação. Mas também é possível fazer uma analogia entre “Don’t Look Up” e “Day After” (lançado ao final de 1983). Este foi um dos raros filmes produzidos para a TV que acabou sendo exibido nos cinemas de todo o mundo e possuía um elenco bastante estrelado, com Jason Robards, JoBeth Williams, Steve Guttemberg e John Lithglow.
Para quem não assistiu, o enredo começa com uma disputa territorial entre Estados Unidos e União Soviética sobre a então Alemanha Ocidental, que é seguida por disparos de mísseis nucleares dos dois lados. O título remete ao que aconteceria nos dias seguintes à hecatombe nuclear. Trata-se de uma narrativa demorada e sofrida.
Lembro de assistir esse filme em 1984, no cine Bruni Vila Nova, em São Paulo, e me questionar sobre o fim do mundo. Naquela época, o vilão que pairava sobre nossas cabeças era o arsenal nuclear das superpotências. Hoje, seria o poderio econômico e sua capacidade de manipular políticos e a realidade, criando condições perfeitas para a discórdia e o negacionismo.
“Não Olhe para Cima” é visto geralmente de duas formas.
Uma interpretação vem daqueles que querem criticar o filme por ser uma narrativa de esquerda, usando uma premissa impossível (o choque de um cometa com nosso planeta) para desacreditar a direita, através de personagens estereotipados e apalermados.
A outra vem de quem enxerga na narrativa uma descrição perfeita de nossa sociedade, envenenada pelo confronto de visões, com um lado totalmente manipulado pelo poder econômico e pelas autoridades.
É possível, no entanto, enxergar essa catarse cinematográfica de outra forma – a de um alerta. Nas últimas décadas, estamos escolhendo nossos políticos (em todos os níveis) de forma displicente. Muitas vezes, estamos exercendo o voto útil ou escolhendo a alternativa menos pior. Ou, ainda, nos esquecendo dos nomes que escolhemos nas últimas eleições legislativas (você lembra em quem votou para deputado federal ou estadual?).
Precisamos nos envolver mais fortemente com as eleições. Escolher partidos e candidatos que tenham a ver com suas convicções pessoais. Lutar por ideais e por conceitos que podem tirar nosso país do atraso. No fundo, tudo o que é descrito em “Não Olhe para Cima” tem origem em uma presidente da República sem pulso, ideologicamente fraca e teleguiada por indivíduos irresponsáveis e inescrupulosos. Por isso, é preciso deixar de enxergar a política como um fardo e as eleições como uma obrigação. Temos de enxergar esse processo como uma ferramenta para colocar o país nos trilhos. Só assim é que teremos uma sociedade mais justa e estaremos livres dos insensatos apocalípticos que tanto mal podem fazer ao nosso planeta.