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Você só ouve artistas ou lê escritores que têm a mesma ideologia que a sua?

Outro dia, testemunhei uma interação curiosa em um grupo de WhatsApp. Uma pessoa postou um texto de Simone de Beauvoir (imagem) sobre as angústias do passado e do futuro. Outro participante, então, criticou a escritora por seu histórico marxista. Entrei na discussão e escrevi o seguinte: “Se não separarmos a pessoa de determinados pensadores e músicos de suas obras, teremos sérias dificuldades em escolher o que ler e o que ouvir”.  Como resposta, obtive um post que segundo o qual artistas e escritores tinham de ser escolhidos de acordo com os “princípios” de cada um.

Este episódio ocorreu há algumas semanas. Mas fiquei remoendo essa questão: devemos ou não filtrar nossa escolha de artistas a partir de um viés ideológico?

Vamos dizer que uma pessoa alinhada com a direita queira apenas escutar músicas de cantores e compositores que apoiaram, digamos, Jair Bolsonaro. Sua dieta musical seria restrita a Ultraje a Rigor e sertanejos diversos.

Artistas são indivíduos difíceis de compreender ou de definir. Vamos pegar como exemplo o líder da banda Legião Urbana, Renato Russo. Ele, em uma entrevista à TV, se declarou capitalista — ainda nos anos 1980, quando isso beirava a heresia. “Propriedade é algo que estou querendo aumentar ao máximo porque quero muitas propriedades, porque sou um capitalista nato”, disse.

Isso faz dele necessariamente alguém ligado à direita? Não. Veja o que ele viria a dizer, anos mais tarde dessa fala sobre ser “capitalista”. “As pessoas que prezam família e respeito à tradição são geralmente pessoas que não respeitam a liberdade das outras pessoas. […] Não quero que eu, tendo uma boa família, ouça um evangélico me dizer que tomo atitudes erradas. Ou ter, como tivemos recentemente, um governo de direita que não respeita a liberdade das pessoas, que prende as pessoas… tudo o que sabemos que aconteceu no Brasil nesse período dos anos 1970”, afirmou.

A letra da canção “Que País é Esse?” também sugere uma ideologia de esquerda, especialmente os versos: “Mas o Brasil vai ficar rico/ Vamos faturar um milhão/ Quando vendermos todas as almas/ Dos nossos índios num leilão” (palavras, por sinal, que ganham uma atualidade monstruosa por conta do noticiário envolvendo a tribo ianomâni).

Cazuza é outro que deixou uma obra de críticas sociais, mas evitou se assumir esquerdista em entrevistas – até porque vinha de uma família rica, cujo pai era alto executivo do ramo de gravadoras. A música “Burguesia”, porém, deixa bem claro como ele pensava (“Vamos pôr a burguesia na cadeia/ Numa fazenda de trabalhos forçados”), assim como “Brasil”, que virou trilha de abertura da novela “Vale Tudo”, tratando sobre a decadência moral e política do país (“Não me ofereceram/ Nem um cigarro/ Fiquei na porta/ Estacionando os carros/ Não me elegeram/ Chefe de nada/ O meu cartão de crédito/ É uma navalha”).

Vamos dizer que Russo e Cazuza tivessem, em seu íntimo, sido comunistas incorrigíveis. Isso tiraria o brilho de seus legados? “Eduardo e Mônica”, “Faroeste Caboclo”, “Tempo Perdido”, “Ainda é Cedo”, “Pais e Filhos” e “Índios” são obras-primas. O mesmo vale para “Exagerado”, “Codinome Beija-Flor”, “Faz Parte do Meu Show”, “Preciso Dizer que Te Amo”, “Bilhetinho Azul” e “Bete Balanço”.

No mundo da literatura, temos um caso que igualmente chama atenção, de uma autora que foi filiada ao Partido Socialista Americano (SPA) e teve uma vida ligada aos movimentos sociais e inclusão de minorias. Sobre essa pessoa, Mark Twain disse que ela e Napoleão seriam as únicas personalidades do século 19 que valeriam a pena ser estudadas. Estamos falando de Hellen Keller, que ficou surda e cega aos dezoito meses de idade. A sua vida é contada no filme “O Milagre de Anne Sullivan”, que rendeu Oscar a Anne Bancroft (Anne Sullivan) e a Patty Duke (Hellen Keller). A trama, baseada no livro “A História de Minha Vida”, mostra como Sullivan conseguiu fazer Keller se comunicar com os outros sem ouvir ou enxergar.

Esse exemplo de superação rendeu doze livros e uma carreira de palestrante que durou décadas. Um de seus livros é sobre sua jornada espiritual: “Das Trevas para a Luz”. Sobre sua devoção religiosa, ela disse: “Eu sempre soube que Deus estava lá, mas não sabia seu nome”.

Vamos um pouco além no espectro ideológico e encontrar um comunista que fez carreira com traços firmes e sinuosos: Oscar Niemeyer. Como ele era um discípulo do comunismo, sua obra arquitetônica, que tem nos palácios de Brasília suas joias da Coroa, poderia ser menosprezada? E o que dizer do edifício Copan, da igreja da Pampulha, do Memorial da América Latina? E do Congresso Nacional, do Museu de Arte Contemporânea de Niterói e o conjunto de prédios na Marquise do Parque Ibirapuera? São trabalhos espetaculares e reconhecidos mundialmente.

No fundo, músicos, escritores, pintores e até arquitetos não valem o que valem por conta de suas convicções políticas – e sim pela sensibilidade e capacidade de traduzir os sentimentos, as frustrações e as alegrias das pessoas, colocando beleza e cor em um mundo que geralmente está pintado em preto e branco. Como se faz isso? Combinando sentimentos complexos e antagônicos como rebeldia e ternura, amor e raiva, esperança e desalento. São pessoas que conseguem ler a própria alma e, com isso, ajudam a humanidade a decifrar suas emoções, boas ou más.

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