As histórias colhidas por Cris Kerr são tão agressivas e vexaminosas quanto comuns na vida corporativa. A solução passa pela cabeça dos líderes. Confira
Assédios moral e sexual são temas que se tornaram alarmantes nos ambientes corporativos nos últimos anos, depois que deixaram de ser naturalizados. Dados levantados pela consultoria Iaudit mostram que 45% das denúncias recebidas nos setores de compliance entre 2019 e 2022 estavam relacionadas à questões morais, mediante ameaças veladas, humilhações e cobranças desproporcionais. Além disso, a startup Forum Hub revelou que 18% das mulheres entrevistadas já foram vítimas de assédio sexual no trabalho. A suspeita é que esses índices muito maiores, já que só há pouco tempo as vítimas se tornaram capazes de identificar as agressões.
Mas enfrentar esses abusos? Como mudar a mentalidade dos líderes e equipes que normalizam tais atitudes tóxicas e criminosas? Tão importante quanto punir os agressores e apoiar as vítimas é reeducar o público.
Estas são as metas que a especialista em assédio, diversidade e inclusão Cris Kerr busca responder em seu livro “Cultura Organizacional Livre de Assédio”. Fundadora da consultoria CKZ Diversidade, há mais de 15 anos Kerr ganha a vida mudando mentalidades. Nem sempre consegue e quando o faz, não é necessariamente na velocidade e proporção desejadas. Mas ela evita se deixar abater.
Responsabilidade deles
Kerr acredita que envolver apenas as mulheres é insuficiente. A cultura do assédio é um mal corporativo que precisa de uma cura sistêmica. Por isso ela inclui os homens na conversa. “Eles estão na liderança. Portanto, é crucial envolvê-los nesse diálogo”, ressaltou.
Não se trata de passar pano para homem, mas sair do nicho. Afinal elas ocupam apenas 3% dos cargos de liderança empresarial no Brasil, estima a Bain & Company. E não se trata de um caminho fácil. Kerr ressalta que até os líderes masculinos assumirem a responsabilidade de liderar pelo exemplo será difícil promover as mudanças que já ocorrem da portaria da firma para fora. “Se os eles não demonstrarem compromissos claros com locais seguros e respeitosos, é improvável que outros sigam seus exemplos.”
Conflito de gerações
Kerr ressalta que muitas vítimas hesitam em denunciar por medo de retaliações. “Nós das gerações mais antigas crescemos assistindo programas de televisão que frequentemente perpetuavam comportamentos machistas, homofóbicos, racistas e discriminatórios. Muitas vezes, nós ríamos dessas situações sem compreender”, observou [quer exemplos extremos? Assista a série “Madmen”]. “É crucial explicar que aquilo que considerávamos brincadeira era bullying”, diz.
“A autora espera que seu livro seja um instrumento de transformação, contribuindo para a criação de ambientes mais saudáveis e inclusivos para as gerações futuras. “Meu objetivo vai além de relatar casos”, afirma. “Pretendo analisar como nossa cultura contribui negativamente para tais comportamentos nas organizações e oferecer saídas, soluções.”
Os relatos
“Estupro é uma palavra que jamais deveria ser dita“
Maria Fernanda, diretora de estratégia e M&As (nome fictício)
“Certa vez [no estágio na Bolsa], vi a equipe toda compartilhando uma espécie de álbum preto, que nunca chegava até mim. Depois me contaram que era um book de garotas de programa. Éramos pouquíssimas mulheres: eu, a secretária e uma ou duas que já tinham endurecido e falavam grosso como os homens”
“Fora o palavreado recheado de expressões como ‘pôr o pau na mesa’, ou ‘meu job está estuprado’. Estupro é uma palavra que jamais deveria ser dita num contexto de trabalho, com essa denotação ‘engraçada’. Quando fui tentar argumentar sobre essas questões, virei ‘a certinha’, ‘a sensível'”.
“Depois que tive a minha primeira filha, estava voltando de uma temporada no exterior, onde fiz meu mestrado, e buscava me recolocar. As recrutadoras sempre perguntavam: ‘Você já sabe com quem você vai deixar sua filha?’. E eu dizia: ‘Sim, ela vai para o berçário’. E a segunda pergunta era: ‘E se ela ficar doente?’. Será que perguntam isso para os homens?”
“Ao longo da minha carreira, passando por seis empresas diferentes e com um breve momento trabalhando como autônoma, me masculinizei bastante. Inclusive na vestimenta. Hoje, não consigo nem olhar para aqueles terninhos pretos, cinzas e beges, aqueles sapatos caretas e aquela maletinha que os homens usam”.
“Tive muitos chefes tóxicos ao longo desses 27 anos de carreira. Mulheres, inclusive. Tinha um que chegava literalmente chutando o balde de lixo, falando alto meu nome. Depois parava ao meu lado, pegava meu trabalho em cima da mesa e dizia: ‘Que lixo!’. Rasgava, amassava e jogava fora. Um dia, ele disse, todo irônico: ‘Vou dar um abraço nela, de tão bom o trabalho que ela fez!’. E me esmagou”. Era uma pessoa que deixava o ambiente todo ruim.”
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“Fui até o RH fazer uma denúncia. Eles me perguntaram: “Tem certeza que é isso que você quer? Porque vai ter investigação, pessoas serão chamadas para entrevistas e você pode se sentir exposta”. Desisti”
“Existem pesquisas que dizem que os psicopatas são mais numerosos nos cargos de chefia. São pessoas muito inteligentes, articuladas e, principalmente, que entregam. Que é o que as empresas querem. Mas entregam deixando rastros de sangue pelo caminho. É hora de elas [as empresas] se perguntarem se ainda querem que seja desse jeito”.
“Fiquei um tempo fora do mercado depois do burnout, mas não quis desistir da profissão. Gosto de trabalhar, ter meu dinheiro, sou boa no que faço, ainda sou nova e tenho muito a contribuir.”
“O gerente veio para cima”
Beatriz Kerr, engenheira civil e sócia na CKZ Diversidade
“Sou heterossexual, mas descobri que a equipe achava que eu era lésbica. Mais tarde, já em outra empresa, soube que todo mundo dizia que eu tinha um caso com o chefe porque ele me protegia e me dava mais atribuições”
“Toda a gerência foi chamada para fazer uma pós-graduação na Fundação Dom Cabral, menos eu. Fui no RH questionar: é por que sou a única mulher? A profissional que me atendeu ficou toda sem jeito, e disse que eu era um nível abaixo deles, o que nem sabia, afinal tínhamos as mesmas entregas”
“No Recife, a equipe era 90% masculina. Mulher, só eu e a profissional de RH. Eu sofria interrupções de fala o tempo todo nas reuniões. Ou então, vinham com aquela postura bem condescendente, que eu chamo de tecla sap, que é quando o homem quer explicar o que você quis dizer”
“Em outro trabalho, os engenheiros adoravam dizer frases como “sim, não tô fazendo nada mesmo, tô só batendo ‘uma’ aqui”.
“Teve uma obra, na qual eu fui contratada para fazer a fiscalização cujos engenheiros eram de outra empresa. Eles não me suportavam porque eu fiscalizava o trabalho deles. Um dia, a briga escalou de uma forma que o gerente se levantou e veio para cima de mim. Foi preciso outro colega se interpor entre a gente para que ele não me agredisse fisicamente.”
“Não tive coragem”
Rafael Barnes, gerente de vendas
“Um diretor fez uma piada de cunho sexual totalmente inadequada em relação às vestimentas femininas. Havia várias mulheres na reunião, que deram um sorriso amarelo porque era o líder delas. Não tive coragem de me posicionar, talvez nem fosse a melhor abordagem reagir de imediato”
“Minha geração é exatamente a da transição. Fomos moleques que faziam piadas que hoje são consideradas inadequadas e, ao crescermos e chegarmos ao mercado de trabalho, pegamos justamente o começo dessa discussão toda: a equidade salarial entre homens e mulheres, as cotas afirmativas, os comitês de diversidade”
“Não perde a piada”
Ari Medeiros, diretor de operações industriais da Veracel
“Como sou extrovertido, e sempre fui muito piadista, dizia sem pestanejar aos colegas coisas como ‘essa camisa tem pra homem?’. Cheguei até a receber uma notificação de denúncia anônima que alguém fez por causa de um comportamento inadequado meu, relacionado a uma piada neste sentido, uns anos atrás”
“Eu era aquele cara que aprendeu que se “perde o amigo, mas não perde a piada”. Que nunca tinha ouvido falar na palavra bullying até metade da carreira (no início do século 21). Como eu ia ser o influenciador com essa cultura, com esse repertório?”
“Sempre achei que ‘sair do armário’ era uma expressão homofóbica, mas entendi, com a própria comunidade, que eles mesmos usam a frase. E posso dizer que está acontecendo uma abertura fantástica de armário na empresa. Até mesmo um gerente que está conosco há dez anos se assumiu publicamente, prova de que existe espaço e acolhimento”.
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