Ser indiferente aos déficits do governo significa defender sua expansão irrestrita
Não é só na esquerda que estão as pessoas que subestimam os efeitos nocivos dos déficits do orçamento do governo e a crescente dívida pública que eles geram. Há também “liberais e conservadores” que subestimam os déficits.
Especialmente no momento atual, em que a pandemia de Covid-19 está aniquilando as contas dos governos, a postura de várias correntes ideológicas até então rivais em relação às fianças públicas parece ter se tornado bastante uniforme.
A esquerda afirma que déficits orçamentários são uma maneira efetiva de o governo estimular a economia. Segundo ela, quando há “recursos ociosos”, inclusive mão-de-obra, déficits do governo têm o poder de colocar tudo para trabalhar e, com isso, reativar a economia. Neste grupo estão os keynesianos, os quais agora ganharam a companhia de pessoas ainda mais bizarras, que são os seguidores da “Teoria Monetária Moderna“.
Argumentos contra essa teoria dos “déficits como estimuladores da economia” já foram apresentados aqui e aqui, de modo que não serão o objetivo deste artigo.
É no segundo grupo, que engloba alguns tipos de liberais e conservadores, que está o interesse deste texto.
Normalmente, este grupo é formado por pessoas contrárias (corretamente) ao aumento de impostos. Tais pessoas não possuem a ilusão de que déficits são necessários para estimular a economia. Elas não são keynesianas. Elas não acreditam que uma economia funcional necessita de um governo fornecendo estímulos fiscais ou monetários. E elas sabem que impostos distorcem e desvirtuam a atividade econômica e, consequentemente, afetam o crescimento econômico.
São realmente liberais em economia.
No entanto, elas afirmam que os déficits e o crescente endividamento do governo “não importam” muito. Consequentemente, elas não defendem uma redução do déficit via corte de gastos (muito “politicamente impopular”).
Logo, dado que não defendem aumento de impostos e não defendem corte de gastos, elas simplesmente dizem que os déficits (e o crescente endividamento) não apenas são um dado da realidade que deve ser aceito, como também não afetam a economia.
Tais pessoas realmente entendem as consequências negativas dos impostos. Estão corretas neste ponto. E isso faz com que elas aceitem os déficits orçamentários com o argumento de que são preferíveis ao aumento de impostos.
Falando mais especificamente, o argumento é que, ao passo que impostos são coercivos (correto) e retiram recursos do setor privado (correto), investidores emprestarem recursos para o governo é um ato voluntário (correto) e, logo, menos nefasto em termos econômicos.
Consequentemente, tais pessoas fazem a pergunta retórica: por que não financiar o governo por meio de empréstimos feitos voluntariamente em vez de por meio de recursos extraídos coercitivamente, algo que comprovadamente distorce a economia?
Afinal, dado que o governo está financiando suas operações com recursos emprestados voluntariamente em vez de com impostos extraídos coercitivamente, o fardo tributário sobre a economia se mantém inalterado e as distorções econômicas não ocorrem. Adicionalmente, a liberdade individual não é atacada. É uma situação em que todos ganham.
Mas há dois erros graves neste raciocínio aparentemente atraente.
Financiamento via endividamento não mantém a carga tributária inalterada
A primeira falácia fatal é a ideia de que o financiamento do governo via endividamento permite que a carga tributária se mantenha inalterada.
Não é verdade.
O financiamento via endividamento de fato permite que os impostos não tenham de subir hoje, mas isso só é possível porque se torna implícito de que os impostos terão de ser subidos em algum momento no futuro. Dado que o serviço da dívida terá de ser pago, incorrer em mais endividamento hoje significa ter de elevar impostos amanhã.
Uma analogia com um indivíduo é útil. Dizer que os cidadãos estão livres de um futuro aumento de impostos sempre que o governo opta por endividamento (em vez de por um aumento de impostos agora) faz tanto sentido quanto dizer que você está livre da obrigação de pagar caso você compre um carro com dinheiro emprestado em vez de à vista.
Obviamente, quando você compra um carro via financiamento, você está incorrendo em uma obrigação futura. Você terá de pagar essa obrigação. O fato de você ter adiado o momento da quitação do pagamento não significa que você não tem de pagar pelo seu carro. O fato de você não estar pagando por seu carro hoje não significa que o seu carro será pago pelo seu banco, que fez o financiamento. Você irá pagar pelo seu carro com a sua renda futura.
Já os indiferentes ao endividamento do governo respondem dizendo que, ao contrário do dívida privada, que realmente tem de ser quitada, o endividamento do governo nunca tem de ser quitado (toda a esquerda e praticamente toda a direita parecem estar de acordo aqui). Segundo eles, o governo sempre pode rolar a sua dívida. Ou seja, quando ocorre o vencimento de um título do governo, o governo sempre pode emitir outro título e com isso arrecadar o dinheiro necessário para quitar o título vincendo.
Logo — prossegue o argumento —, os gastos de ontem do governo, feitos à época com empréstimos voluntários concedidos por investidores ao governo, não são quitados pelos pagadores de impostos de hoje. Igualmente, os gastos de hoje do governo serão financiados por empréstimo voluntários feitos ao governo, e não terão de ser quitados pelos pagadores de impostos do futuro.
Toda essa dívida que vai se acumulando poderá ser eternamente rolada.
Mantendo-se esse arranjo para sempre, os pagadores de impostos nunca serão afetados.
Faz realmente sentido acreditar neste moto-perpétuo?
É claro que o governo pode rolar sua dívida. Com efeito, ele faz isso frequentemente. Ou seja, o governo não só pode, como frequentemente ele quita sua dívida vincenda emitindo mais dívida. Ele quita parte de sua dívida com mais empréstimos. Mas o governo só consegue fazer isso porque os credores corretamente entendem que ele tem o poder de tributar.
Assim como um banco só concede a você um empréstimo para comprar um carro porque ele entende que você tem a capacidade de auferir uma renda e, com isso, a capacidade de quitar sua dívida, os credores compram títulos do governo somente porque entendem que o governo tem o poder de tributar e, com isso, a capacidade de quitar suas dívidas.
A necessidade de o governo ter de quitar suas dívidas é mascarada, na prática, pelo fato de o governo ser capaz de rolar com frequência suas dívidas. E dado que a longevidade de um governo é muito maior que a de um ser humano, o governo consegue rolar sua dívida por mais tempo que qualquer pessoa.
Mas para entender por que a capacidade do governo de rolar sua dívida depende totalmente da sua capacidade de tributar, faça a si mesmo a seguinte pergunta: se o governo repentinamente perdesse seu poder de tributar (inclusive a capacidade de imprimir moeda, que nada mais é do que um imposto, no caso, um imposto inflacionário), você emprestaria dinheiro para o governo? Você compraria os títulos da dívida do governo (via Tesouro Direto, por exemplo)?
Ainda que você responda que sim, você realmente acredita que, sem o poder de tributar, todos os outros credores também continuarão emprestando para o governo? Mais ainda: você continuaria emprestando para o governo se você não estiver confiante de que outros emprestarão para ele no futuro? Lembre-se: se, no futuro, outros não emprestarem para o governo, você simplesmente levará calote quando os títulos públicos em sua posse vencerem.
Assim que os credores passarem a acreditar, generalizadamente, que o governo não mais tem poder de “receita” — ou seja, que o governo não mais tem o poder de tributar —, eles irão emprestar para o governo o mesmo tanto que emprestariam para um condenado com prisão perpétua sem chance de condicional.
Qualquer promessa de que esse prisioneiro poderá pedir emprestado na segunda-feira para quitar a dívida contraída no domingo, e depois pegar emprestado de novo na terça-feira para quitar a dívida contraída na segunda-feira, e assim por diante, não será nada convincente. Esse presidiário rapidamente será visto como alguém que não possui nenhuma fonte de renda.
Um governo sem o poder de tributar também não possui fonte de renda. (Um “governo” com um fonte de renda, mas sem o poder de tributar seria uma organização privada, no mesmo nível de uma associação de proprietários.)
Portanto, antes de passarmos para a segunda falácia, sempre tenha isso em mente: a capacidade de um governo de se endividar depende, em última instância, de seu poder de tributar.
Financiamento via endividamento estimula o governo a crescer excessivamente
A segunda falácia é ainda mais irônica: pessoas corretamente contrárias ao aumento de impostos aparentemente não percebem que estão defendendo a expansão estatal ao afirmarem que déficits não importam.
O tamanho dos gastos do governo não é independente dos meios utilizados para financiar esses gastos.
Especificamente, dado que a capacidade de o governo se endividar permite que os políticos e pagadores de impostos de hoje possam passar a conta dos gastos estatais atuais para os pagadores de impostos futuros, o custo de políticos e pagadores de impostos atuais expandirem o estado hoje é menor do que seria caso o governo não conseguisse se endividar.
A capacidade e a facilidade de se endividar, portanto, subsidia expansões no tamanho do governo. Ademais, dado que os recursos gastos hoje serão quitados pelos pagadores de impostos futuros, há todos os motivos para se acreditar que os gastos estatais atuais serão ainda mais esbanjadores e pródigos do que seriam caso o governo não tivesse essa capacidade.
Daí a grande ironia de “liberais, conservadores e direitistas” que se dizem anti-estado mostrarem indiferença aos déficits: se realmente fosse verdade que o governo pode se endividar indefinidamente, sem realmente depender dos futuros pagadores de impostos, então a taxa de crescimento do tamanho do governo, e consequentemente sua influência sobre a economia, aumentaria ainda mais do que já aumenta hoje.
Políticos, ao se darem conta de que podem conseguir empréstimos dos credores sem terem de se preocupar com a quitação dessa dívida e nem com nenhum aumento de impostos, passariam a ser ainda mais pródigos com o orçamento, e com isso acabariam sugando para o estado cada centavo disponível na economia, asfixiando o financiamento para investimentos privados, aniquilando a economia produtiva e ampliando o estado para todas as searas de nossas vidas.
Aqueles cidadãos que se opõem a um estado inchado teriam ainda mais dificuldades para oferecer resistência a essa expansão do poder estatal.
Para concluir
Dada a existência de uma organização que pode legalmente iniciar o uso de força física, deveríamos ser gratos pelo fato de essa organização não ter um acesso tão fácil e irrestrito aos nossos recursos, ao contrário do que acreditam aqueles que dizem que déficits não importam.
E uma gratidão extra e especial deve ser expressada por aqueles de nós que somos totalmente céticos quanto às intenções e capacidades do estado.
Falando de maneira mais prática, nós, céticos quanto aos poderes de um governo, jamais deveríamos parar de alertar quanto aos perigos dos déficits e do crescente endividamento do governo. Mostrar indiferença aos déficits e à dívida reduz os custos para os políticos expandiram o tamanho e o escopo do governo.
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Por Donald Boudreaux
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