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Estamos próximos de uma crise global de liquidez?

Entenda os motivos e possíveis consequências da drenagem das operações de recompra reversa pelo Fed

Após a massiva injeção de liquidez empreendida pelo Fed a partir da crise de 2008, a condução da política monetária precisou ser alterada. O antigo ambiente com reservas restritas passou a contar com amplas reservas, e a manipulação da taxa de juros de curto prazo (FFR – Federal Funds Rate) se tornou mais difícil. Dessa forma, para não perder o controle sobre a FFR, o Fed passou a utilizar as taxas administradas IOR e ON RRP rate para colocar a FFR no range desejado pelo FOMC (Federal Open Market Comittee).

Para drenar o volume de reservas em excesso das instituições que, por questões legais, não podiam receber juros sobre as reservas (IOR), as operações de recompra reversa (ON RRP) foram introduzidas. Assim, a ON RRP rate passou a funcionar como piso para a FFR, enquanto a IOR (taxa de juros sobre as reservas) como teto, formando uma espécie de corredor.

Nesse novo cenário, o volume diário de negociações de recompra reversa escalou de praticamente zero, em março de 2021, para algo em torno de US$ 2,2 trilhões, em junho de 2022, e se manteve nesse patamar por quase um ano. No entanto, a partir de maio de 2023, o volume começou a cair rapidamente, atingindo US$ 683 bilhões em 15/12/2023. Uma redução de US$ 1,5 trilhão no volume diário em apenas sete meses. Diante disso, levantamos a seguinte questão: quais os possíveis impactos para a economia global, caso o volume de operações de recompra reserva chegue a zero?

Gráfico 1 – Operações recompra reversa overnight

Federal Reserve Bank of New York, Overnight Reverse Repurchase Agreements: Treasury Securities Sold by the Federal Reserve in the Temporary Open Market Operations [RRPONTSYD], retrieved from FRED, Federal Reserve Bank of St. Louis (December 18, 2023)
A recente política monetária contracionista do Fed

Após a escalada do índice de preços ao consumidor (CPI), que atingiu o maior nível desde a década de 1980, com um pico de 8,93% em junho de 2022 (muito distante da meta de 2% estabelecida), o Fed foi obrigado a mudar o rumo da política monetária.

A partir de março de 2022, o aperto foi iniciado, e, em julho de 2023, a FFR teve seu último aumento até então, ficando na faixa de 5,25% – 5,5%, maior taxa desde fevereiro de 2001. Diante do novo modus operandi da política monetária, o Fed também elevou as taxas administradas ON RRP rate e IOR para 5,30% e 5,40%, mantendo a FFR dentro desse corredor, em 5,33%.

Adicionalmente, após o balanço do Fed ter atingido a incrível e monstruosa marca de US$ 8,9 trilhões, em abril de 2022, o banco central americano iniciou o programa de aperto quantitativo (QT) em busca de retornar seu balanço a algum nível de “normalidade”. Assim, o Fed passou a vender títulos para reduzir seu balanço e enxugar a massiva liquidez injetada nos últimos 15 anos.

Ao adotar essas duas medidas contracionistas – elevar a taxa de juros e reduzir seu balanço – o objetivo do Fed é elevar o custo dos empréstimos para diminuir a liquidez nos mercados e desaquecer a economia, buscando o retorno do CPI para a meta de 2% estabelecida.

Não é difícil notar que o desafio do Fed é grande. Entre 2008 e 2022, o balanço do Fed cresceu de US$ 900 bilhões para US$ 8,9 trilhões, um aumento de 889%. Na mesma direção, o M2 cresceu de US$ 7,7 trilhões para US$ 21,7 trilhões no mesmo período, um aumento de 182%.

Após o Fed reverter a condução da política monetária de dinheiro fácil que manteve nos últimos 15 anos, os primeiros efeitos começaram a aparecer. De abril de 2022 a maio de 2023, o M2 caiu 6,3%, enquanto o Fed reduziu seu balanço em US$ 1,2 trilhão entre abril e dezembro de 2023.

Esse movimento contracionista não ocorreu sem efeitos colaterais. Em 2023, uma série de bancos foram à bancarrota nos EUA, como o Silicon Valley Bank, o Signature Bank, o Silvergate e o First Republic Bank. Bancos estrangeiros também foram afetados, como o Credit Suisse. E apesar de pouco noticiado, outros bancos também faliram, como Heartland Tri-State Bank e Citizens Bank, em julho e novembro de 2023, respectivamente. Esses casos figuram entre a segunda e terceira maior falência de bancos da história americana, somando um total de ativos de quase US$ 560 bilhões.

Pisando no freio do freio

De modo a evitar uma crise bancária possivelmente mais ampla nos EUA, o Fed e o governo americano rapidamente se manifestaram. O FDIC garantiu totalmente todos os depósitos, e o Fed anunciou um financiamento adicional às instituições depositárias elegíveis para ajudar a garantir que os bancos tenham a capacidade de satisfazer as necessidades de todos os seus depositantes. Além disso, para evitar que a situação se alastrasse, os reguladores globais, incluindo o Fed, o Banco do Canadá, o Banco da Inglaterra, o Banco do Japão, o Banco Central Europeu e o Banco Nacional Suíço, intervieram para fornecer liquidez extraordinária. E em meio a todos esses acontecimentos e intervenções do governo, o discurso reforçou que o sistema bancário dos EUA permanece resiliente e assenta numa base sólida.

Assim, o Fed ampliou os mecanismos de liquidez para garantir que os “sólido” sistema bancário não tivesse mais problemas. Em março de 2023, mais de US$ 350 bilhões foram emprestados. Adicionalmente, o Fed criou um novo programa de financiamento bancário, o BTFP. Em dezembro de 2023, o volume de empréstimos superou US$ 121 bilhões.

Gráfico 2 – Programa de financiamento bancário – BTFP

Board of Governors of the Federal Reserve System (US), Assets: Liquidity and Credit Facilities: Loans: Bank Term Funding Program, Net: Wednesday Level (December 17, 2023)

Diante disso, o Fed está atuando de forma ambígua. Por um lado, elevou a taxa de juros e iniciou o aperto quantitativo. Por outro, injetou um volume de liquidez considerável na economia. A base monetária, que deveria estar diminuindo já que o Fed está adotando uma postura contracionista, aumentou em 2023.

A economia real

A economia americana tem experimentado dados aparentemente positivos, como têm repetido economistas do mainstream e figuras do governo. Porém, os efeitos da política de ampla liquidez do Fed, especialmente depois da crise do Covid, apontam que a economia americana não está bem.

O índice de preços ao consumidor, que atingiu o pico em junho de 2022, vem caindo desde então. Em meados de 2023, o CPI ensaiou uma aceleração e de fato chegou a 3,7% em agosto, mas segue dentro de um intervalo tido como aceitável pelo Fed. No entanto, a renda real média das famílias americanas segue tendência acentuada de queda desde 2019.

A taxa oficial de desemprego da economia americana, medida pelo Bureau of Labor Statistics, se mantém relativamente comportada, apesar de ter chegado a 3,9% em outubro passado, a maior taxa desde janeiro de 2022. Porém, uma análise mais detalhada dos dados sugere que o mercado de trabalho dos EUA não vai tão bem assim. Os cortes de vagas de emprego têm atingido máximas desde a pandemia, enquanto as estatísticas de pessoas com múltiplos empregos atingiram a máxima histórica.

O crescimento do PIB, por sua vez, tem sido noticiado como “impressionante”. Mas quando desagregamos a fórmula do PIB, percebemos que esse crescimento não é sustentável. O “impressionante” crescimento do PIB tem sido puxado pelo consumo das famílias e pelos gastos do governo – ambos sustentados por expansão da dívida.

Os possíveis impactos da política do Fed

Dado esse confuso cenário de uma economia “pujante”, “inflação” “retornando à meta”, “desemprego baixo” e um “sistema financeiro sólido”, voltamos à questão inicial. Considerando que o volume vem caindo em média US$ 9 bilhões por dia, de acordo com a tendência, é provável que as negociações de ON RRP zerem em cerca de três meses, ou seja, em torno de fevereiro/março de 2024. Se isso acontecer, quais os possíveis impactos para a economia global?

As instituições que, por motivos legais, não podem receber juros sobre reservas têm algumas opções para obter retorno com suas reservas em excesso: (1) emprestar no mercado de fundos monetários (MMF); (2) emprestar no mercado de REPO; (3) ON RRP e; (4) comprar títulos. Em geral, a opção 2 oferece um retorno maior. Entretanto, ao final do dia, o volume não emprestado no mercado de REPO passou a ser “estacionado” no Fed nas operações de ON RRP, rendendo uma taxa de juros com um risco virtualmente nulo (empréstimo para a própria autoridade monetária criadora de dólares).

Porém, a dívida pública americana aumentou aproximadamente US$ 900 bilhões em maio de 2023, e grande parte dessa dívida se deu pela emissão de títulos de curto prazo (T-Bills). Dessa forma, em maio de 2023, as taxas de juros dos títulos de quatro semanas superaram a taxa de juros da ON RRP e, nos meses seguintes, mantiveram-se orbitando a ON RRP rate, sugando parte do volume antes direcionado para essas operações overnight.

Gráfico 3 – ON RRP rate vs. Título do Tesouro americano com vencimento de 4 semanas

Federal Reserve Bank of New York, Overnight Reverse Repurchase Agreements Award Rate: Treasury Securities Sold by the Federal Reserve in the Temporary Open Market Operations [RRPONTSYAWARD], retrieved from FRED, Federal Reserve Bank of St. Louis (December 18, 2023). Board of Governors of the Federal Reserve System (US), 4-Week Treasury Bill Secondary Market Rate, Discount Basis [DTB4WK], retrieved from FRED, Federal Reserve Bank of St. Louis (December 18, 2023)

Dessa forma, na medida em que parte do volume monetário estacionado no Fed por meio das operações de recompra reversa migram para a compra de títulos, os dólares são transferidos para a conta geral do governo (TGA) mantida no Fed, a partir da qual faz todos os seus pagamentos. Sendo assim, na medida em que o governo gasta, os dólares entram na conta corrente da empresa/indivíduo que vendeu um bem/serviço para o governo, expandindo o M2. Coincidentemente, o M2 parou de cair e lateralizou a partir de maio de 2023, mesmo o período em que o volume de ON RRP começou a cair. Isso ocorre porque o dinheiro estacionado nas operações de recompra reversa representa um ativo de instituições como os fundos mútuos, por exemplo, e um passivo do Fed. Portanto, não compõe o M2. No entanto, na medida em que o governo gasta, o dinheiro é depositado em alguma conta corrente. Esse depósito é um passivo bancário, e compõe o M2. 

Diante disso, podemos especular sobre alguns dos possíveis impactos na economia quando o volume de recompra reversa zerar.

Primeiro, na medida que mais recursos monetários migrem da ON RRP para os títulos, é possível que o M2 pare de lateralizar e comece a aumentar. Como resultado, podemos ver uma nova pressão altista sobre os preços, fazendo com que o CPI torne a subir. Tal movimento estará em sentido diametralmente oposto aos objetivos do Fed com sua política monetária contracionista. Adicionalmente, na medida em que a dívida americana aumente, os investidores exigirão retornos cada vez maiores para financiar um governo com uma dívida que já supera 120% do PIB. O que deixará o Fed em uma situação bastante delicada.

Para evitar a expansão do M2 e a perda do controle do CPI novamente, o Fed teria que elevar a taxa de juros ou, pelo menos, mantê-la alta por mais tempo. Adicionalmente, com o aumento dos retornos exigidos pelo mercado para financiar uma dívida em espiral de alta, a única forma de fazer com que as operações de ON RRP sejam novamente atrativas é elevar a ON RRP rate, ou seja, mais aperto na política monetária. Movimento bem diferente dos cortes da taxa de juros aguardados pelo mercado para 2024.

Com isso, quando o mercado tiver novamente suas expectativas frustradas, diante de um cenário de dívida elevada, taxa de juros e CPI pressionados para cima, abundância de títulos de dívida e menor volume de reservas monetárias na mão das instituições financeiras, é possível que um despertar coletivo finalmente aconteça. E esse despertar pode vir acompanhado de pânico e capitulação.

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Por Bernardo Santana e Samuel Vaz-Curado

Publicado originalmente em: https://encurtador.com.br/amszR

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