A abolição de Bretton Woods gerou uma dívida insustentável que dá sinais de esgotamento
Foi no dia 15 de agosto de 1971, em uma manhã de domingo, que o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, declarou que o dólar não mais era conversível em ouro.
A história resumida
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, os países aliados concordaram em designar os Estados Unidos âncora do sistema monetário. Maior potência mundial e com as contas públicas razoavelmente organizadas, os Estados Unidos detinham dois terços do estoque de ouro do planeta.
O mundo concordou em acumular dólares em suas reservas internacionais, com a contrapartida de que seus governos podiam requerer a troca de dólares pelo ouro, que garantiria a estabilidade. Os dólares funcionavam como “créditos” contra o governo americano, pois conferiam direito ao resgate do ouro.
Este acordo foi feito na cidade de Bretton Woods, no estado americano de New Hampshire.
Sob este arranjo monetário, o dólar passou a ser a moeda de reserva internacional, e os Bancos Centrais de todo o mundo receberam uma garantia do governo americano de que poderiam trocar suas reservas em dólares por ouro a um preço fixo.
Ou seja, o dólar tinha um valor especificado em ouro (uma onça de ouro valia 35 dólares). E todas as outras moedas tinham um valor fixo em relação ao dólar.
Na prática, portanto, todas as moedas do mundo estavam atreladas, ainda que indiretamente, ao ouro.
É importante ressaltar que não se tratava de um padrão-ouro genuíno. Longe disso. A maioria dos países já havia rompido qualquer elo direto entre suas moedas e o ouro antes da Primeira Guerra. Os cidadãos americanos ainda estavam proibidos, pelo seu próprio governo, até mesmo de portar ouro privadamente.
Não obstante, um tênue elo entre o dólar e o ouro ainda existia.
E então veio agosto de 1971, e todo este arranjo foi abolido em um só dia.
Como ocorreu
Em meados da década de 1960, os EUA estavam economicamente no auge. Sendo um dos poucos países a não ter abandonado a ligação entre o ouro e a moeda nacional nas duas grandes guerras mundiais, os EUA, em 1965, estavam no padrão-ouro havia 176 anos.
A classe média americana havia alcançado o apogeu da prosperidade, sendo a inveja de todo o mundo. Em termos relativos, o nível de prosperidade da época jamais seria equiparado novamente. Outros países como Alemanha, Japão e até mesmo o México estavam enriquecendo rapidamente, uma vez que eles também participavam do padrão-ouro global, tendo suas respectivas taxas de câmbio fixadas em relação ao dólar (o qual, como dito, tinha um valor fixo em relação ao ouro).
Em 1965, os EUA estavam vivenciando um boom econômico gerado pelos cortes de impostos sancionados pelo presidente Kennedy em 1963, e que entraram em vigência em 1964. Porém, o então presidente Lyndon Johnson começou a aumentar os impostos novamente, pois tinha de pagar pela Guerra do Vietnã e, principalmente, pelos vastos e inéditos programas sociais que ele havia criado em seu programa A Grande Sociedade.
Já em 1969, o presidente Nixon dobrou os impostos sobre ganhos de capital, elevando a alíquota máxima para quase 50%. Houve uma recessão.
De olho nas eleições de 1972, Nixon começou a fazer de tudo para reativar a economia. Em 1970, ele colocou Arthur Burns na presidência do Federal Reserve, o Banco Central americano. Para reverter a recessão, Burns deu início a uma agressiva política monetária expansionista, reduzindo os juros e expandindo a oferta monetária e de crédito, sempre de acordo com os princípios das doutrinas keynesianas e monetaristas da época.
Isso deu origem aos fenômenos econômicos que hoje são conhecidos como “os choques da era Nixon“. As tentativas de se implantar “políticas monetárias arbitrárias” entraram em conflito com o sistema de padrão-ouro vigente da época, que não permitia arbitrariedade na política monetária.
Essa política monetária expansionista aumentou enormemente a quantidade de dólares no mundo. E quanto mais esses dólares se acumulavam nas mãos de governos estrangeiros, mais estes governos exigiam que fossem restituídos em ouro.
O país mais agressivo em suas exigências era a França, liderada pelo principal conselheiro monetário de Charles De Gaulle, o economista defensor do padrão-ouro clássico Jacques Rueff, aluno de Ludwig von Mises.
Isso gerou uma severa redução no estoque de ouro em posse do governo americano.
As 20.000 toneladas do metal amarelo que haviam sido depositadas em Fort Knox em 1944 vinham decrescendo substancialmente. Estava nítido que os EUA — a principal potência econômica global — não mais podiam honrar seus compromissos financeiros.
A situação do governo americano foi se deteriorando até que as coisas chegaram a um momento decisivo: Nixon teria de abrir mão ou de sua política monetária frouxa ou do padrão-ouro.
No dia 15 de agosto de 1971, um domingo, Nixon foi à televisão e disse que o governo americano não apenas não mais iria restituir dólares em ouro, como também declarou o fim do sistema de Bretton Woods, desatrelando completamente o dólar do ouro.
Após o decreto de Nixon, os Bancos Centrais estrangeiros não mais poderiam trocar seus dólares acumulados por ouro ao preço oficial de US$ 35 a onça. Com efeito, eles simplesmente não mais poderiam exigir que o governo americano redimisse dólares em ouro.
Assim, todos os outros países do mundo repentinamente se viram em uma situação sombria: quando o dólar estava atrelado ao ouro, estes países podiam simplesmente atrelar suas moedas ao dólar, e isso faria com que eles automaticamente também estivessem em um padrão-ouro. Mas com a saída dos EUA do sistema de Bretton Woods, o dólar não mais tinha nenhuma ligação com o ouro. Ele se tornou uma moeda totalmente fiduciária, lastreada não por ouro mas sim pela simples promessa do governo.
Pior ainda: o dólar começou a afundar em relação ao ouro (com a onça do ouro indo de US$ 35 para mais de US$ 600).
Todas as moedas estavam à deriva, sem nenhuma definição precisa para seu real valor.
Por um tempo, vários países tentaram se manter no jogo simplesmente mantendo suas respectivas moedas atreladas ao dólar, que agora era totalmente flutuante.
Mas em 1973 todos abriram mão. Haviam chegado ao limite. Não mais era possível atrelar suas moedas a uma moeda que agora era completamente fiduciária e que estava se desvalorizando acentuadamente. Os países desatrelaram suas respectivas moedas do dólar e, com isso, as moedas mundiais começaram a flutuar entre si.
O dinheiro em todo o mundo tornou-se meramente uma moeda de papel sem lastro — ou, cada vez mais, uma moeda eletrônica —, que poderia ser criada por produtores privilegiados — bancos e Bancos Centrais — praticamente sem limite. (E hoje, como consequência dessa liberdade para se inflacionar, o atual preço do ouro já está em US$1.800).
Consequência: o mundo entrou em um colapso inflacionário. A década de 1970 foi a década da inflação de preços — que alcançou níveis até então inéditos (nem a Suíça escapou) — e do declínio econômico.
A popularidade de Nixon se evaporou por completo, e ele se tornou o único presidente americano da história a ser ejetado do cargo no meio de seu mandato.
O padrão-ouro não colapsou; foi unilateralmente abolido
E assim se “consolidou” o arranjo cambial e monetário sob o qual vivemos até hoje: as moedas são destituídas de qualquer tipo de definição e os Bancos Centrais são livres para manipular a oferta monetária ao seu bel-prazer.
E vale ressaltar: não houve nenhum desastre econômico que deu início a este novo arranjo. Não houve nenhum fracasso monumental do sistema de padrão-ouro global. Não houve nenhuma reunião de líderes governamentais de todas as partes do mundo, em algum hotel de luxo, para criar um novo sistema global de moedas flutuantes. Não houve nem sequer uma proposta para se estabelecer um sistema global de moedas flutuantes.
Não houve tratados, referendos ou discussões, como os que precederam a criação da zona do euro. Quando o sistema global de moedas flutuantes primeiramente surgiu, no dia 15 de agosto de 1971, era para ser apenas uma medida temporária. Ninguém imaginou, à época, que um novo sistema estava surgindo para ficar.
O sistema global de moedas flutuantes, esse mesmo sistema que temos hoje, surgiu por mero acidente.
Na prática, a abolição de Bretton Woods representou o fim de um regime monetário que, desde a alvorada da civilização, havia tornado o dinheiro tanto um meio geral de troca como também uma reserva de valor. O que começou em 1971 foi uma nova era de anormalidade histórica. Uma era de moedas de papel fiduciárias e de curso forçado, gerenciadas por Bancos Centrais monopolistas.
Portanto, o atual arranjo de taxas de câmbio flutuantes é uma invenção extremamente jovem. Está fazendo apenas 50 anos de idade em agosto deste ano. Está longe de ser a norma.
Com efeito, a história da civilização ocidental, desde a Renascença em diante (em outras palavras, toda a história do capitalismo moderno), é majoritariamente uma história de moedas estáveis, atreladas ao ouro e à prata — e, em alguns casos, feitas realmente de ouro e de prata. Algumas moedas flutuantes, com efeito, sempre existiram, mas sempre eram marginais, sem nenhuma importância. Os países de economia mais bem sucedida sempre tiveram uma moeda estável, atrelada ao ouro.
Em 1971, o mais bem-sucedido e mais influente país era, obviamente, os Estados Unidos, o qual, até então, sempre utilizaram, desde o seu surgimento em 1789, uma moeda atrelada ao ouro. Os primeiros 182 anos da história americana ocorreram sob um padrão-ouro.
Aliás, a história é ainda maior: esses 182 anos de moeda americana atrelada ao ouro foram, na realidade, uma continuação de 600 anos anteriores de moedas européias atreladas ao ouro.
Desde a abolição do que restava do padrão-ouro em 1971, e a subsequente adoção de moedas fiduciárias livremente manipuladas por governos, o fenômeno da inflação de preços tornou-se uma constante.
O gráfico abaixo mostra a evolução do índice de preços gerais ao consumidor americano. Na prática, o gráfico mostra quantos dólares são necessário para comprar uma cesta contendo uma fatia de todos os bens de consumo disponíveis na economia americana.
O gráfico deixa explicito que o fenômeno da inflação contínua é inerente ao papel-moeda estatal de curso forçado e sem lastro. Se o dólar é inflacionado, todas as outras moedas também são.
A atualidade
O experimento monetário atual — marcado por prolongados processos inflacionários e crises bancárias — não se provou superior a Bretton Woods. Com efeito, dá preocupantes sinais de esgotamento.
Em vários aspectos, o cenário atual se assemelha aos anos derradeiros de Bretton Woods. Agora não temos o Vitenã, mas temos a guerra ao vírus.
Vamos aos paralelos:
1) o Fed está complacente com a inflação, que está em nítida ascensão. Os preços dos produtos importados subiram 11% nos últimos 12 meses; os exportados subiram 17%;
2) há uma espúria mistura entre as políticas monetária e fiscal. O Fed passou a monetizar o déficit público, que triplicou para mais de US$ 3 trilhões em 2020 e 2021 (mais de 13% do PIB). Desde o início da pandemia, o Fed comprou US$ 3 trilhões em títulos do Tesouro. A ex-presidente do Fed virou secretária do Tesouro. O Fed discursa mais sobre ESG, diversidade e aquecimento global do que sobre temas monetários;
3) há péssimos conselhos de economistas. O inflacionismo da Teoria Monetária Moderna está em voga (outrora a curva de Phillips keynesiana era a queridinha);
4) hoje, o mundo aceita continuar acumulando dólares em suas reservas internacionais.
O resultado foi um aumento da dívida global em cerca de US$ 40 trilhões, alçando-a a patamar próximo de quatro vezes o PIB mundial.
Para concluir
Jacques Rueff, unindo teoria e ação (ordem de trocas de dólares por ouro), detonou nos anos 1960 o início da correção das políticas insustentáveis. Hoje não sabemos de onde virá o estouro, mas aquilo que não é sustentável não pode continuar indefinidamente.
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Por Helio Beltrão e Anthony Geller
Publicado anteriormente em: https://curt.link/QquwocK