Por Helio Beltrão
É fato: a situação fiscal do governo seguirá calamitosa nos próximos 10 anos, mesmo com a aprovação da Reforma da Previdência.
O gráfico a seguir mostra, na linha azul, a evolução das receitas tributárias líquidas do governo (deduzida das restituições e incentivos fiscais) e, na linha vermelha, a evolução das despesas. Detalhe: as despesas não incluem o pagamento do serviço da dívida (juros e amortizações).
Atenção: como se trata de uma média móvel de 12 meses, o valor na coluna da esquerda se refere a valores mensais. Na prática, um valor de R$ 100 bilhões significa que, em um período de 12 meses, este foi o valor médio arrecadado (ou despendido) pelo governo a cada mês. Para se ter uma ideia do valor anual, basta multiplicar o valor por 12 (meses).
Gráfico 1: na linha azul, a evolução das receitas tributárias líquidas do governo; na linha vermelha, a evolução das despesas primárias (que exclui gastos com a dívida). Média móvel 12 meses. (Fonte e gráfico: Banco Central)
Perceba que, até 2014, havia um superávit primário. Ou seja, quando se desconsidera os gastos com o serviço da dívida, o governo arrecadava mais do que gastava. A partir do final de 2014, a realidade se inverte, e o governo passa a ter um até então inédito déficit primário, isto é, o governo passa a gastar mais do que arrecada, mesmo sem considerar os gastos com a dívida.
Já o gráfico a seguir, também em forma de média móvel, mostra a evolução das receitas e das despesas da previdência social (no caso, apenas o INSS; este gráfico não abrange o RPPS, que é a previdência do setor público, ainda mais deficitária; e também não abrange os militares; e nem o Fundo Constitucional do DF. Não é minha culpa. É o único gráfico disponibilizado pelo Banco Central).
Gráfico 2: na linha vermelha, as receitas da Previdência Social; na linha azul, os gastos com benefícios previdenciários. Média móvel 12 meses. (Fonte e gráfico: Banco Central)
Observe que sempre houve déficit, mas, a partir de 2015, com o aprofundamento da recessão (aumento do desemprego, redução no ritmo da arrecadação e aumento dos gastos previdenciários do governo), o déficit se acelera. A arrecadação desacelera (aumento do desemprego e da informalidade) e os gastos aumentam (mais auxílios para um número cada vez maior de pessoas).
Atualmente, o déficit do INSS é de aproximadamente R$ 18 bilhões por mês, o que equivale a aproximadamente R$ 210 bilhões por ano.
E, de novo, isso apenas para o INSS. Quando se junta tudo (funcionários públicos, militares, e fundo constitucional do DF), o rombo é de R$ 290 bilhões por ano.
E isso apenas em nível federal. Se você acrescentar estados e municípios, a coisa chega facilmente a R$ 380 bilhões.
Como não há mais de onde arrecadar, e dado que os gastos governamentais são constitucionalmente rígidos — ou seja, é legalmente proibido cortar —, a única alternativa para o governo fechar as contas (isto é, fechar o espaço que separa a linha azul da linha vermelha) é se endividar: ele tem de recorrer ao mercado e pedir dinheiro emprestado, pois só assim ele pode cobrir seus déficits orçamentários.
Como consequência, a trajetória do endividamento do governo se tornou assombrosa.
O gráfico abaixo mostra a evolução da dívida bruta do governo federal desde julho de 1994. A dívida nada mais é do que um acumulado de déficits. Assim, o gráfico abaixo mostra o volume de dinheiro que foi absorvido pelo governo federal para financiar seus déficits — dinheiro este que, caso não houvesse déficits, poderia ter sido direcionado para o financiamento de investimentos produtivos:
Gráfico 3: evolução da dívida total do governo federal (Fonte e gráfico: Banco Central)
Assustado?
Por enquanto, tudo tranquilo no mercado financeiro
Não obstante estes números, o mercado financeiro, sedado por juros internacionais em queda livre, está complacente e negocia o risco Brasil em níveis inéditos, a 120 pontos contra 290 de um ano atrás.
Não me parece apreçado no risco Brasil o contínuo ataque dos inflacionistas ao seguinte arcabouço de responsabilidade fiscal: a) regra de ouro, que impede que o governo contraia dívida para efetuar gastos correntes, b) lei de responsabilidade fiscal, que limita despesas com pessoal e endividamento, e estabelece mecanismos de equilíbrio entre receitas e despesas, e c) teto de gastos, que impede que as despesas cresçam acima da inflação.
Estamos travando a mesma batalha de 1932, quando Keynes, Pigou e Fisher pregavam impulso fiscal e monetário em meio à crise fiscal que se seguiu à crise de 1929, enquanto Hayek e Robbins defendiam que o investimento privado deveria liderar a recuperação econômica.
Keynes venceu a batalha naquela ocasião ao prescrever exatamente o que os políticos queriam: concretizar gastos. Como bem disse Hans-Hermann Hoppe:
O keynesianismo ensina exatamente tudo aquilo que políticos e governos querem ouvir. […] O keynesianismo é a teoria econômica favorita dos políticos simplesmente porque ela lhes concede um arcabouço supostamente científico para fazer aquilo que eles mais gostam: gastar dinheiro.
A teoria keynesiana diz que os gastos do governo impulsionam a economia; que expandir o crédito (melhor ainda se for subsidiado) gera crescimento econômico; que os déficits do governo são a cura para uma economia em recessão; que inchar a máquina estatal, dando emprego para burocratas, é uma medida válida contra o desemprego (quem irá pagar?); que regulamentações, se feitas por keynesianos, são propícias a estimular o espírito animal dos empreendedores. E, obviamente, que austeridade é péssimo.
Desde então, o keynesianismo escancarou aos políticos as comportas da irresponsabilidade fiscal e monetária.
Em 2019, André Lara Resende baseia-se na keynesiana Teoria Monetária Moderna (Modern Monetary Theory – MMT) para receitar que o governo gaste mais e imprima mais dinheiro nesta crise fiscal. E, na mídia, acadêmicos recorrentemente fazem eco ao mote de “gastar e imprimir”.
Dilacerar as políticas de responsabilidade, incorrendo em rombos e mais dívida, tornou-se a nova política econômica defendida por esses intelectuais. O espantoso é que esta foi precisamente a política que causou a atual crise.
Parafraseando seu guru Keynes, preferem esbanjar hoje, pois, no longo prazo, não mais estarão aqui para pagar a conta.
Bomba-relógio
Enfrentar nossa crise fiscal não é um tema ideológico, mas de cifras de endividamento que teimam em ser inflexíveis. Não há ideologia que refute ou altere a realidade demonstrada pelos gráficos 1, 2 e 3.
Adicionalmente, trata-se de um tema temporal, um conflito entre gerações. Temos hoje de arcar com obrigações previdenciárias contraídas na geração anterior, as quais são impossíveis de serem quitadas pelos impostos da geração atual. Consequentemente, o estado se endivida para bancar estas obrigações assumidas no passado. Só que esse endividamento crescente, que viabiliza artificialmente a manutenção de todo este arranjo, é impossível de ser quitado integralmente pelas gerações futuras.
Há 240 anos, Adam Smith dizia que “quando a dívida pública alcança certo nível, não é mais paga integralmente; a falência do governo é disfarçada por pagamentos de faz de conta.” Smith se referia aos meios que o governo utiliza para levantar recursos: impostos, endividamento e inflação.
Aumentos de impostos são evitados pelos governantes sob pena de perda de popularidade, vide o recente episódio da CPMF. O método preferido é o aumento de endividamento, o faz de conta. Como mostra o gráfico 3, desde 2013, a dívida bruta saltou de 51% para 77% do PIB (aumento de mais de 50%)
Ocorre que, para além de um determinado nível de dívida, a deterioração do risco de crédito inviabilizará o malabarismo: o mercado não emprestará mais ao governo. Para evitar o calote, a consequência final é a inflação por monetização de dívida. Pagará a conta, portanto, aquele grupo de interesses que não vota nem é organizado: o das futuras gerações.
No jogo de empurrar com a barriga, o STF proibiu a redução de salários de funcionários públicos prevista na LRF, políticos defendem a implosão do teto de gastos, e o Congresso autoriza o governo a descumprir a regra de ouro.
A sociedade e o governo, iludidos, não querem enfrentar a causa fundamental da crise: o tamanho dos gastos públicos. No entanto, é preciso cortar desde já as duas rubricas que representam cerca de 80% do total: salários dos servidores e aposentadorias de forma geral. A alternativa, asseguro, é a futura falência inflacionária.