Por que insistem em chamar o pensador econômico austríaco de fascista?
“Fascista” hoje em dia é pouco mais do que um termo ofensivo para os oponentes e não tem valor cognitivo, mas a seguir o usarei em um sentido preciso, para designar um apoiador do regime instaurado por Benito Mussolini na Itália. Nesse sentido, Ludwig von Mises era um fascista ou um simpatizante do fascismo? A pergunta à primeira vista parece absurda e, de fato, devo argumentar que é; Mises era um defensor do livre mercado, da liberdade e das relações internacionais pacíficas, em contraste com a economia controlada pelo Estado e a violência do ditador italiano.
Apesar de tudo isso, alguns historiadores responderam afirmativamente à nossa pergunta, e o principal deles é Perry Anderson, um formidável estudioso marxista. No ensaio “The Intransigent Right at the End of the Century“, que apareceu na London Review of Books em setembro de 1992 e tem sido frequentemente referenciado desde então, Anderson diz sobre Mises que:
Não havia defensor mais intransigente do liberalismo clássico no mundo de língua alemã dos anos XX… [mas] olhando além da fronteira, ele podia ver as virtudes de Mussolini. Os camisas-negras haviam, para o momento, salvado a civilização europeia pelo princípio da propriedade privada; “o mérito que o fascismo conquistou com isso viverá eternamente na história”.
Anderson cita com precisão o Liberalismo de Mises, mas distorce completamente a visão de Mises. Mises oferece nesse livro uma crítica penetrante ao fascismo italiano, e somente extraindo a frase citada de seu contexto, e distorcendo seu significado, Anderson foi capaz de retratar Mises como um apoiador de Mussolini. A seguir, tentarei explicar a visão de Mises sobre o fascismo, conforme ele a expõe no Liberalismo. Ao fazer isso, fui precedido pelo grande historiador Ralph Raico, que abordou o tópico em um ensaio de brilho característico, “Mises on Fascism, Democracy, and Other Questions“, mas seu relato tem uma ênfase diferente da minha.
A discussão de Mises está contida em “As razões do fascismo”, uma seção do primeiro capítulo de Liberalismo, “Os fundamentos da política econômica liberal”. Mises afirma que a chegada ao poder dos “partidos da Terceira Internacional” – ou seja, os partidos comunistas controlados pela Rússia soviética – mudou a natureza da política europeia para pior, de uma forma que nem mesmo a Primeira Guerra Mundial fez. Antes de os comunistas chegarem ao poder, a influência das ideias liberais impunha padrões de contenção às forças autoritárias.
Antes de 1914, mesmo os inimigos mais obstinados e ferozes do liberalismo tiveram de resignar-se a aceitar muitos dos princípios liberais, sem contestação. Mesmo na Rússia, onde uns poucos raios do liberalismo haviam penetrado, os defensores do despotismo czarista, ao perseguirem seus oponentes, tinham, ainda assim, de levar em conta as opiniões liberais da Europa. Durante a Grande Guerra, as partes em conflito das nações beligerantes, mesmo com todo o zelo, tiveram, ainda assim, de usar de certa moderação na luta contra a oposição em sua terra (p. 73). (Todas as citações subsequentes são do Liberalismo).
As coisas mudaram quando os comunistas chegaram ao poder
Os partidos da Terceira Internacional consideram permissíveis quaisquer meios, desde que lhes pareçam úteis na consecução de seus objetivos. Quem não reconhecer, incondicionalmente, todos os seus ensinamentos como os únicos corretos e a eles não se conformarem com toda a lealdade, a seu juízo, sujeita-se à pena de morte. Não hesitam em exterminá-lo e a toda a sua família, inclusive as crianças pequenas, quando e onde for fisicamente possível (p. 73).
Chegamos agora a uma parte do argumento de Mises que é crucial para entender sua opinião sobre o fascismo. Ele diz que alguns oponentes do socialismo revolucionário pensaram que haviam cometido um erro. Se ao menos estivessem dispostos a matar seus oponentes revolucionários, desrespeitando as restrições do estado de direito, teriam conseguido impedir a tomada do poder pelos bolcheviques. Mises claramente associa os fascistas a esses “nacionalistas e militaristas” e diz que eles estavam enganados. O socialismo revolucionário é uma ideia, e apenas a melhor ideia do liberalismo clássico pode derrotá-lo.
O que distingue a tática política liberal da do fascismo não é uma diferença de opinião relativa à necessidade de usar a força armada para resistir a atacantes armados, mas uma diferença na consideração do fundamento do papel da violência na luta pelo poder. O grande perigo que ameaça a política interna na perspectiva do fascismo reside na sua total fé no decisivo poder da violência. Para assegurar o êxito, deve-se estar imbuído da vontade de vencer e de sempre proceder de modo violento. É este o mais alto princípio. O que ocorre, porém, quando um adversário, de modo semelhante, animado pelo desejo de tornar-se vitorioso, também age de modo violento? O resultado é, necessariamente, uma batalha, uma guerra civil. O vitorioso final, a surgir desse conflito, será a facção mais numerosa. A longo prazo, a minoria, mesmo que composta dos mais capazes e enérgicos, não pode resistir à maioria. Por conseguinte, permanece sempre a questão decisiva: como obter a maioria para o seu próprio partido? Esta, entretanto, é uma questão puramente intelectual. É uma vitória que somente poderá ser obtida, utilizando-se as armas do intelecto, nunca a força. A supressão de toda oposição pela violência é o caminho mais inadequado para ganhar adeptos para uma causa. O recurso à força bruta (isto é, sem justificativa, no que concerne aos argumentos intelectuais aceitos pela opinião pública) simplesmente faz com que se ganhem novos amigos entre aqueles que se tenta combater. Numa batalha entre a força e a ideia, esta última sempre prevalece (pp. 75-76).
Mises não tem utilidade para a política doméstica fascista, e sua política externa não é melhor
Não merece maiores considerações o fato de que a política externa do fascismo, baseada no reconhecido princípio da força nas relações internacionais, não pode deixar de causar uma série de conflitos internacionais que, necessariamente, destruirão toda a civilização moderna. Para manter e aumentar o atual nível de desenvolvimento econômico, deve-se assegurar a paz entre as nações. Porém, estas não podem viver em paz, se o princípio básico da ideologia que as governa for a crença de que somente pela força se pode assegurar, para si, um lugar na comunidade das nações (pp. 76-77).
Mas e a frase citada por Perry Anderson? O mérito que Mises atribui ao fascismo italiano é que ele salvou a Itália de uma tomada comunista, que teria resultado na aplicação de métodos bolcheviques de extermínio. É a esse respeito, afirma Mises, que “salvou a civilização europeia” e conquistou para si um mérito que “viverá eternamente na história”. Mises não afirma que apenas os fascistas poderiam ter detido os comunistas; sua afirmação é que os fascistas de fato o fizeram. (Este é um assunto que tem despertado muita controvérsia entre os historiadores; para outra defesa da visão de Mises, veja o artigo de Ralph Raico citado anteriormente).
Ao arrancar uma frase de seu contexto, Anderson converteu uma condenação do fascismo em uma defesa dele. É como se alguém fosse chamado de simpatizante do comunismo porque escreveu que “o comunismo soviético conquistou a glória eterna ao salvar a Europa da barbárie nazista”, embora o escritor fosse um forte crítico do comunismo. Na verdade, essa é exatamente a visão de Mises, como os leitores de Governo Onipotente devem se lembrar.
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Por David Gordon
Publicado originalmente em: https://curt.link/eZwkn9j