Uma opinião de quem é do ramo
Durante muito tempo, acreditei e defendi a tese das patentes na indústria farmacêutica. Sempre parti do princípio de que uma empresa do ramo só faria investimentos vultosos caso tivesse a garantia do estado de que não teria concorrentes para copiar seu trabalho.
Quando trabalhei em uma farmacêutica multinacional, a questão estava incrustada em mim. Já saí da indústria há um bom tempo e adoro o setor. Mas, sobre as patentes, revi meu posicionamento.
Vale mencionar que vi debates interessantes na Interfarma e no SINDUSFARMA, durante a minha fase de jurídico na Indústria Farmacêutica. Além disso, li e reli a ação da EMS contra a Bayer Pharmaceuticals, e acompanhei o julgamento recente no STF sobre o tema. Tudo isso, e, principalmente, o estudo da opinião de alguns economistas me ajudaram na reflexão.
Sempre defendi, com grande afinco, que a patente gerava inovação. Afinal, quem investiria em pesquisa e desenvolvimento sem a garantia dos direitos de comerciar com exclusividade por 20 anos? Na prática, um verdadeiro monopólio vintenário.
Tive, então, um debate muito interessante e bastante elucidativo com o Hélio Beltrão (presidente do Instituto Mises) sobre o tema. Ele apresentou argumentos e livros que me fizeram refletir.
Por indicação dele, por exemplo, li um livro interessantíssimo de Stephen Kinsella (“Contra a propriedade intelectual“).
Um dos pontos levantados no livro que mais me sensibilizaram foi este, resumido na página 19 do livro:
Finalmente, mesmo se deixarmos de lado os problemas de comparação interpessoal de utilidade e a justiça da redistribuição, e seguirmos em frente, empregando técnicas padrão de medida utilitarista, não fica de forma alguma claro se leis de PI levam a alguma mudança — seja um aumento ou um decréscimo — na riqueza total.
É discutível se direitos autorais e patentes realmente são necessariamente encorajadores da produção de trabalhos criativos e invenções, ou se os ganhos incrementais da inovação ultrapassam os imensos custos de um sistema de PI.
Estudos econométricos não mostram conclusivamente ganhos líquidos em riqueza. Talvez existisse ainda mais inovação se não houvesse leis de patente; talvez mais dinheiro para pesquisa e desenvolvimento (P&D) estivesse disponível se não estivesse sendo gasto em patentes e tribunais.
É possível que companhias tivessem um incentivo ainda maior para inovar se elas não pudessem contar com um monopólio de quase 20 anos dessas invenções.
Ora, não havendo evidência econômica empírica de que a patente gera mais benefícios para a sociedade, a base para a concessão do monopólio de 20 anos, impedindo que todos no mundo possam fabricar, fica enfraquecida.
Como bem explicado por Kinsella, o fundamento do direito de propriedade está na escassez. Escassez, no caso, não se refere a desabastecimentos ou racionamentos, mas sim à ausência de uma abundância infinita de tudo o que as pessoas querem em um determinado momento. Isso se deve a uma característica intrínseca do mundo material que impede que você e eu possamos exercitar exatamente o mesmo controle sobre o mesmo bem material ao mesmo tempo.
Nós dois não podemos calçar os mesmos sapatos ou beber água da mesma garrafa ao mesmo tempo. Ou você come aquele pedaço de picanha, ou eu como. Ou então dividimos ao meio (e aí um de nós não ficará saciado). Não há uma máquina mágica de reprodução que faça com que a carne surja do nada.
Por isso, é crucial haver propriedade privada sobre recursos escassos.
Entretanto, não há escassez no que tange a propriedade intelectual. Se alguém cria uma fórmula para um medicamento, por exemplo, o uso desta fórmula não cria uma escassez. Tal uso não impede que outros possam utilizar a mesma fórmula para criar o mesmo produto.
Qualquer um que tiver os meios poderia fabricá-lo, gerando, assim, uma oferta maior em benefício aos consumidores e para a saúde da sociedade.
Assim como fórmulas, idéias, imagens, sons, combinações de letras em uma página e criações não são bens escassos: são coisas que podem ser reproduzidas indefinidamente.
Logo, uma “propriedade intelectual” nada mais é do que a criação de uma escassez artificial pelo uso da força estatal. Não existe ‘propriedade intelectual’; o que há são monopólios intelectuais.
Como bem enfatizou Beltrão, tal medida não apenas não é uma defesa da propriedade, como, ao contrário, atenta contra a propriedade real. Afinal, se você não pode usar sua propriedade para simplesmente duplicar uma ideia minha, isso significa que eu, o dono da propriedade intelectual, expropriei de você a sua “real” propriedade.
A patente, portanto, cria uma escassez inexistente, fazendo com que uma pessoa (física ou jurídica) controle a oferta de determinado produto no mercado, permitindo a cobrança de preços monopolistas por 20 anos.
Países com menos patentes tiveram mais inovações
A ideia por trás desse instituto — transformado em lei, pela primeira vez, em Florença (Itália), no ano de 1421 — era a de proteger o inventor. Mas isso tinha em mente o indivíduo, pessoa física, como, por exemplo, um Thomas Edison.
Hoje em dia, a propriedade intelectual é usada para viabilizar que, por 20 anos — enfatize-se, 20 anos —, uma empresa pratique preços monopolistas sobre determinado produto.
No caso específico dos medicamentos, veja-se a análise de Michele Boldrin e David K. Levine no livro Contra o Monopólio Intelectual:
Se patentes fossem um requisito necessário para a inovação farmacêutica, como é alegado por seus defensores, as historicamente amplas variações observadas em vários países em termos de proteção patenteada de produtos médicos deveriam ter tido um impacto dramático nas indústrias farmacêuticas nacionais.
Especificamente, pelo menos entre 1850 e 1980, a maioria dos remédios e produtos médicos deveria ter sido inventada e produzida nos Estados Unidos e no Reino Unido (países com muitas patentes), e muito pouco (quase nada) deveria ter sido produzido no continente europeu. Ademais, países como Itália, Suíça e, em menor grau, Alemanha (países com menos patentes), deveriam ser os mais atrasados da indústria farmacêutica até recentemente. No entanto, ocorreu o exato oposto por mais de um século. (Michele Boldrin; David K. Levine. Against Intellectual Monopoly — Locais do Kindle 3191-3192. Edição do Kindle)
Ou seja, a própria empiria comprova que os monopólios intelectuais, assim como qualquer monopólio, em vez de criarem incentivos à inovação, acabam desestimulando-a, pois restringem a concorrência: o monopolista fica acomodado com o privilégio (muito longo), e os concorrentes ficam desestimulados a investir em áreas já protegidas, com medo de represálias administrativas e judiciais.
As consequências negativas
Um exemplo magnífico da consequência negativa da propriedade intelectual com relação a medicamentos ocorreu recentemente.
Como noticiado, a empresa Biogen desenvolveu um medicamento (Aduhelm) que visa a tratar o Alzheimer. Todavia, ele foi aprovado pelo FDA (órgão regulador dos EUA) a despeito de a comunidade científica questionar a sua eficácia. Cientistas têm se manifestado, com veemência, no sentido de que os estudos clínicos não trouxeram evidência de que o medicamento funciona.
Muito bem. Apesar das dúvidas, em razão da garantia do monopólio de 20 anos (a propriedade intelectual), a Biogen surpreendeu a todos com o valor de US$ 56 mil por ano de tratamento (para um medicamento, reitere-se, sem comprovação de eficácia).
Diante disso, as ações da empresa dispararam com uma alta de 38%.
Vale destacar, por oportuno, que o mercado esperava um valor entre US$ 10 mil a US$ 24 mil por ano (considerando, é claro, a patente), o que já seria escandaloso. Mas a farmacêutica conseguiu surpreender até os analistas mais experientes com esse valor desproporcional.
O problema é que há uma coalisão perversa entre custeio público de medicamentos e os direitos decorrentes da propriedade intelectual. O caso acima ilustra a questão. A Biogen, por óbvio, está apostando nas verbas dos Estados, que usarão o dinheiro do pagador de impostos para comprar o medicamento.
Logo, a patente está gerando um incentivo perverso para a cobrança de preços exorbitantes que serão custeados — querendo ou não — pela sociedade, por, frise-se, 20 anos.
Soluções
Há algumas possibilidades para endereçar esse problema.
Acabar com a patente e deixar as empresas competirem em livre mercado. Reduzir o prazo. Franquear a cobrança de royalties para o inventor. Ou, ainda, acabar com a aquisição compulsória de medicamentos no período de monopólio vintenário decorrente das patentes.
Em todo caso, é importante trazer à baila dispositivos relevantes da Lei da Liberdade Econômica, que apresentam uma diretriz no que tange ao racional econômico a ser adotado na interpretação da lei, inclusive para tentar uma modulação com relação as patentes de medicamentos:
Artigo 4º — É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente:
I — criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes;
II — redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado;
III — exigir especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado;
IV — redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco;
V — aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios;
VI — criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros;
VII — introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas;
VIII — restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei federal; e
IX — exigir, sob o pretexto de inscrição tributária, requerimentos de outra natureza de maneira a mitigar os efeitos do inciso I do caput do artigo 3º desta lei.
Apesar de o artigo se referir ao abuso do poder regulatório, ele apresenta elementos que devem ser avaliados pelo operador do direito, tanto na interpretação e aplicação quanto na formulação de leis, regulamentos e etc.
Se é abuso regular, será também um equívoco interpretar levando às consequências apontadas no dispositivo acima.
Aliás, alguns dos incisos acima têm aplicação direta na questão debatida no presente texto, e eles podem servir como parâmetros interpretativos para a análise da Lei de Patentes, principalmente sob a perspectiva consequêncialista trazida pelo artigo 20 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro:
Artigo 20 — Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Lembre-se, nesse passo, que a própria Lei de Patentes dispõe o seguinte no seu artigo 2º:
A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.
Além disso, quando trata dos requisitos da patente (artigos 8º, 9º e 10), a Lei dispõe, dentre outras questões, o seguinte em uma clara preocupação com a saúde púbica:
Artigo 10 — Não se considera invenção nem modelo de utilidade (…) III — técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para aplicação no corpo humano ou animal.
Percebe-se, da leitura do dispositivo acima, que o objetivo de proteger a ideia e o inventor não é mais o ponto crucial. Caso contrário, por que não proteger a inovação de tratamento criada por um médico?
Curiosamente, contudo, o artigo 18 da Lei de Patentes dispõe o seguinte:
Não são patenteáveis: I — o que for contrário à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à saúde públicas.
Não seria amoral a concessão de uma patente que acaba gerando, como consequência, preços que sequer conseguiram ser previstos pelo mercado?
Parece que, no caso de medicamentos, uma situação como a da Biogen, com seu preço estratosférico, não estaria alinhada com os dispositivos mencionados acima. Ela, aliás, seria a perversão dos institutos. Um monopólio artificial que permite a cobrança de preços estratosféricos, transferindo a conta para o pagador de impostos; ou, ainda, para todos os segurados que pagam por seus seguros saúde — cada vez mais caros.
Para concluir
Cada medicamento deve ser analisado individualmente. Mas independentemente do caminho a ser escolhido — e de possíveis questionamentos judiciais —, é preciso rever essa questão, principalmente considerando que não há prova quanto ao suposto benefício das patentes, principalmente com relação ao alegado — e não provado — incentivo para pesquisa e desenvolvimento.
O mundo mudou muito desde 1491. Talvez seja o momento de nos livrarmos desse dogma jurídico e olharmos o tema sob um prisma diferente e moderno.
Por fim, vale mencionar que, no campo contratual — sob a ótima da autonomia da vontade —, a propriedade intelectual contratualmente estabelecida pelas partes deve ser respeitada. Assim, se as partes atribuírem direitos de propriedade intelectual a uma das contratantes, a cláusula deverá ser observada pela contraparte, sujeitando-se a parte infratora a indenizar no caso de sua violação.
Como bem resumiu este Instituto: monopólios intelectuais são ruins e devem ser revogados, mas não subitamente. Se algo estava no contrato, este algo não deve ser subitamente rompido, mas sim renegociado na próxima renovação de um contrato.
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Leonardo Corrêa
Publicado anteriormente em: cutt.ly/5n24pDn