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O caminho contrário à servidão: uma entrevista com Friedrich Hayek

O economista e filósofo Friedrich Hayek deve ter pressentido algo quando o entrevistei em Los Angeles, em maio de 1977. Nas décadas de 30 e 40, Hayek era o segundo economista mais famoso do planeta, mais conhecido como o rival intelectual de John Maynard Keynes. 

Sobre as questões fundamentais da política econômica, o debate entre o professor Friedrich Hayek, da London School of Economics, e o professor John Maynard Keynes, da Universidade de Cambridge, provocou um confronto memorável entre a economia clássica e a “nova teoria macroeconômica” da Teoria Geral, recém-lançado livro de Lord Keynes, de 1936.

Os keynesianos varreram todos os argumentos acadêmicos e praticamente os enterraram. Com a morte de Keynes em 1945, Hayek (e a teoria clássica dos ciclos econômicos) desapareceu rapidamente da opinião pública. 

A política econômica entrou na era de ouro da “gestão da demanda”, na qual os ciclos econômicos haviam se tornado obsoletos (ou era o que se pensava), enquanto Hayek saiu completamente dos estudos da teoria econômica. Em 1950, ele foi para a Universidade de Chicago, onde presidiu o Comitê de Pensamentos Sociais, e terminou sua carreira na Universidade de Freiberg (1962-1968) e na Universidade de Salzburgo (1968-1977). Ele embarcou em importantes contribuições em novos campos como psicologia (The Sensory Order, 1952), teoria política (The Constitution of Liberty, 1960) e direito (Law, Legislation & Liberty, Volumes I-III, 1973-79).

Ele foi sábio em se afastar da economia. Pois sua discussão com Keynes não foi a única derrota que ele sofrera naquelas rarefeitas discussões teóricas. A famosa controvérsia do cálculo socialista foi motivada pela crítica austríaca ao planejamento central. Entre os anos 1920 e os anos 40, Hayek e seu compatriota Ludwig von Mises argumentaram que o socialismo estava fadado ao fracasso como um sistema econômico, porque apenas mercados livres — movidos por indivíduos agindo e negociando em seu próprio interesse — podiam gerar as informações necessárias para coordenar o comportamento social de forma inteligente.

Em outras palavras, a liberdade é um insumo necessário para uma economia próspera. Mas, mesmo quando o elegante ensaio de Hayek exaltando os preços de mercado como os sinais de uma economia racional foi saudado como uma contribuição seminal após sua publicação na American Economic Review em 1945, os astutos teóricos socialistas, para a satisfação de seus pares, “provaram” que o problema do planejamento central poderia ser resolvido com computadores gigantescos, o tal problema de informação que F.A. Hayek havia exposto com tanta cordialidade.

Perder um ou outro debate acadêmico não é o pior que pode acontecer a um ser humano de talento, e Hayek não foi destruído. Ele seguiu e publicou trabalhos brilhantes nos anos seguintes. Mas, dentro da profissão econômica, não é segredo que Hayek era um excluído da academia, um retrocesso, um personagem marginal cujas ideias haviam sido claramente refutadas para todos homens coerentes nas revistas científicas de sua época.

Mas daí algo bizarro aconteceu. 

O final do século XX decidiu prover um choque de realidade aos acadêmicos. As décadas de 1960 e 1970 viram a prosperidade do pós-guerra entrar em parafuso numa espiral inflacionária naqueles países que foram adeptos ao keynesianismo (principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido). Foi um choque ao tal processo de peer-review, que havia rigorosamente comprovado o contrário em muitas outras ocasiões, quando pleno emprego não pôde ser mantido através das teorias de prateleira dos keynesianos. 

A terapia tradicional — estimular o consumo e penalizar as poupanças com uma generosa infusão de gastos e déficits do governo – estava agora sendo julgada pelo mundo real, e os resultados encontrados foram “não-robustos”. 

Os modelos macroeconômicos de Cambridge, Harvard, Berkeley e MIT desmoronaram e, na década de 1980, as próprias soluções que Keynes havia prescrito estavam sendo dolorosamente atribuídas justamente como a raiz de nossos problemas. De repente, os antigos e clássicos remédios — poupança, investimento, orçamentos equilibrados, competição e crescimento da produtividade – passaram a ser reivindicados amplamente como as metas de política econômica de um bom governo. 

Até os políticos, tão felizes de terem recebido a prescrição de Keynes de gastos governamentais como o elixir mágico para tratar uma economia doente, haviam abandonado publicamente o keynesianismo.

E a possibilidade de um planejamento econômico racional sob o socialismo? Sim, nós também realizamos este experimento. O Terceiro Mundo tentou e de logo caíram para os níveis de renda registrados na Época do Pleistoceno. O Segundo Mundo (Comunista) tentou isso em doses vultosas de estado policial e … bem … dissolveram-se.

As tendências de oposição ao keynesianismo no Ocidente e do socialismo em todos lugares estavam apenas começando a se afirmar quando Hayek – afastado da profissão econômica por 30 anos –surpreendentemente foi agraciado com o Prêmio Nobel de Economia em 1974

Do dia para noite, o pateta se transformou em guru. E não foi sem justificativa. No final da década de 1970 – com os partidos dos trabalhadores, Democratas e Social-Democrata ainda no poder em Londres, Washington e Bonn —, a visão de Hayek já havia avistado movimentos políticos surgindo no horizonte ao redor do mundo. 

As mudanças políticas em todo o mundo nos anos 1980 foram cuidadosamente antecipadas por Hayek nesta entrevista (nunca publicada antes). Ele parecia sentir que, em breve, não seria mais um sinal de desrespeito ser chamado de o maior filósofo do capitalismo desde Adam Smith.

As vezes faz-se necessário viver por muito tempo só para provar ao mundo que você estava certo. Quando Friedrich August von Hayek, nascido em 1899, morreu em 23 de março em Freiberg, na Alemanha, em 1992, ele viveu o suficiente para ver a prova real de Keynes e Marx. Felizmente para a raça humana, o mesmo tem acontecido com suas ideias.

[Thomas W. Hazlett entrevistou Hayek em 1977, pouco antes de começar a pós-graduação em economia na Universidade da Califórnia, Los Angeles.]

Reason: Sobre seu best-seller O Caminho da Servidão, John Maynard Keynes escreveu: “Na minha opinião, é um grande livro … Moralmente e filosoficamente eu estou de acordo com praticamente todo ele: e não apenas de acordo, mas em um acordo profundo e emotivo”. Por que Keynes diria isso sobre um trabalho bem crítico do ponto de vista keynesiano?

Hayek: Porque ele ainda acreditava que era, essencialmente, um liberal clássico inglês e não tinha noção do quanto se afastara disso. Suas ideias básicas ainda eram de liberdade individual. Ele não pensou sistematicamente o suficiente para ver estes conflitos. Ele foi, de certa forma, corrompido pela necessidade política. 

Sua famosa frase sobre “no longo prazo, estaremos todos mortos” é uma ilustração muito boa de estar limitado pelo que é politicamente possível no momento. Ele parou de pensar no que é desejável a longo prazo. Por essa razão, acho que ele não será um formador de opiniões no longo prazo, e suas ideias eram de uma época que, felizmente, agora está passando.

Reason: O Keynes mudou de opinião nos seus últimos anos, como houve rumores?

Hayek: Nada tão drástico quanto isso. Ele estava oscilando o tempo todo. É como se ele estivesse no meio do caminho e sempre se preocupando com a conveniência do momento. 

Na última conversa que tive com ele (cerca de três semanas antes de sua morte em 1945), perguntei se ele não estava ficando alarmado com o que alguns de seus alunos estavam fazendo com suas ideias. 

E ele disse: “Ah, eles são apenas tolos. Essas ideias foram extremamente importantes na década de 1930, mas se estas ideias se tornarem perigosas, você pode confiar em mim — que eu vou mudar a opinião pública num estalar de dedos”. 

E ele teria feito isso! Tenho certeza de que, no período pós-guerra, Keynes se tornaria um dos grandes militantes contra a inflação.

Reason: A tese de Keynes de que os gastos do governo são necessários para fomentar a demanda agregada em tempos de desemprego estava correta em algum momento?

Hayek: Não. Certamente que não. Mas, é claro, vou muito além disso. Acredito que, se não fosse a interferência do governo no sistema monetário, não teríamos flutuações industriais e nem períodos de depressão.

Reason: Então os ciclos econômicos são causados exclusivamente pelas autoridades monetárias dos governos?

Hayek: Não tão diretamente. Da maneira como você coloca, pareceria que isso resulta de erros deliberados cometidos pelas políticas do governo. O erro está na criação de um semi-monopólio, no qual a base monetária é controlada pelo governo. 

Dado que todos os bancos emitem dinheiro secundário (meios fiduciários), redimível em papel-moeda (que faz parte da base monetária), você tem um sistema que ninguém realmente consegue controlar. Portanto, o responsável final é realmente o monopólio estatal sobre a moeda. Ninguém que fosse encarregado desse monopólio poderia agir de forma razoável.

Reason: Você tem escrito que o período entre 1950 e 1975 entrará para a história como o momento da Grande Prosperidade. Se a tese de Keynes está incorreta, por que então este tremendo sucesso econômico? Por que, por exemplo, não experimentamos uma hiperinflação da ordem da Alemanha em 1922?

Hayek: Porque a inflação na Alemanha não tinha o objetivo de manter a prosperidade; ela foi imposta a eles devido a dificuldades financeiras. Se você inflacionar a moeda com a finalidade de manter a prosperidade, poderá fazê-lo a uma taxa muito mais moderada.

A prosperidade durou mais do que eu previa. Eu sempre antecipei o seu colapso, mas pensei que viria muito mais cedo. Eu estava pensando algo nos termos dos colapsos dos booms inflacionários ocorridos nos ciclos econômicos anteriores. Mas aquelas recessões foram em decorrência do padrão-ouro, que freou essas expansões monetárias depois de alguns anos. Até então, nunca havia ocorrido um arranjo em que uma política de expansão monetária deliberada ocorresse sem qualquer restrição imposta por algum arcabouço monetário (como o fazia o padrão-ouro). Tal arranjo chegou ao fim somente quando se viu que não podemos acelerar a inflação tão rapidamente e ainda assim manter a prosperidade.

Reason: Os Estados Unidos reduzira a inflação de 12% para 4,8%, a Grã-Bretanha de 30% para 13% — ambos sem os contratempos de uma grande Depressão. Isso não oferece esperança de que ajustes econômicos possam ser feitos sem desemprego em massa?

Hayek: Não sei por que você está sugerindo isso. Foi realizado, em grande parte, por meio de um forte aumento no desemprego. Eu certamente acredito ser verdade que o fim de uma inflação não precisa levar a um longo período de desemprego como ocorreu nos anos 1930, pois na época a política monetária não estava apenas errada somente durante o boom; estava igualmente errada durante a Depressão. Primeiro, eles prolongaram o boom e causaram uma forte recessão; depois, permitiram que a deflação monetária continuasse e prolongaram a Depressão. Após um período de inflação como o que tivemos nos últimos 25 anos, não conseguimos sair dela sem ter desemprego considerável.

Reason: Como a inflação causa desemprego?

Hayek: Ao atrair pessoas para empregos que existem apenas porque a demanda relativa por determinados produtos foi aumentada temporariamente (em decorrência da inflação monetária). Esses empregos irão desaparecer assim que for interrompida a expansão monetária.

Reason: No entanto, se os Estados Unidos, por exemplo, passassem temporariamente por um período de alto desemprego – digamos que a taxa de desemprego se torne o dobro da atual por um a dois anos –, não aconteceria uma situação em que todos os programas de manutenção de renda, como o seguro desemprego, bem-estar social etc., gerariam uma despesa tão grande que levaria à falência o governo federal, o qual já apresenta um déficit de $ 50 bilhões ou $ 60 bilhões mesmo estando em um período de recuperação econômica?

Hayek: Sim, eles provavelmente gerariam. Haveria uma enorme disputa política sobre a questão, se os benefícios da seguridade social devem ser adaptados à inflação ou reduzidos. Eu não acho que você possa efetuar uma cura permanente sem uma alteração substantiva do sistema de seguridade social.

Reason: Será que a abominação de financiar essa burocracia colossal de bem-estar social nos “chocará” a ponto de nos empurrar para a adoção de uma estrutura governamental mais racional?

Hayek: Não. Minha única esperança é realmente que um país menor ou países que por qualquer razão terão que construir uma nova constituição o façam com sensatez, e tenham grande sucesso de forma que outros acharão interessante imitá-los. 

Não acho que os países que se orgulham de suas constituições realmente precisem fazer experimentos de mudanças. A reforma pode vir, digamos, da Espanha, que precisa escolher uma nova constituição. Ela pode estar preparada para adotar uma constituição sensata. Não acho que seja realmente provável que isso aconteça na Espanha, mas é um exemplo. E isso pode ser tão bem-sucedido que, no fim, veremos que existem maneiras melhores de se organizar o governo do que aquele que nós temos seguido.

Reason: Para evitar a inflação, você tem defendido que a política monetária tenha o objetivo de manter a estabilidade no valor do dinheiro. É necessário confiar nos políticos para regular a oferta monetária? As forças de mercado não podem se ajustar para corrigir uma eventual deflação gradual?

Hayek: Sim, elas fazem ocasionalmente. O problema é que, no sistema mecânico, o que força os políticos é o padrão-ouro. O padrão-ouro, mesmo que fosse adotado nominalmente agora, não funcionaria, pois as pessoas não estão dispostas a jogar as regras do jogo. As regras do jogo que o padrão-ouro exige estipulam que, se você tem uma balança comercial desfavorável, você contrai a sua moeda (vivencie uma deflação monetária). É isso que nenhum governo consegue fazer — eles preferem sair do padrão-ouro. 

Com efeito, estou convencido de que se restabelecêssemos o padrão-ouro agora, dentro de seis meses um primeiro país sairia dele e, dentro de três anos, desapareceria completamente.

O padrão-ouro era baseado no que era essencialmente uma superstição irracional. Enquanto as pessoas acreditassem que não havia salvação fora do padrão-ouro, a coisa funcionaria. Essa ilusão ou superstição foi perdida. Agora, nunca podemos executar com êxito um padrão-ouro. Eu gostaria que pudéssemos. É em grande parte, por causa disso, que eu tenho pensado em alternativas.

Reason: Em vários momentos, você defendeu um sistema monetário baseado em uma cesta de commodities e na concorrência da oferta monetária. Estas são alternativas práticas a um sistema de banco central controlado pelo governo?

Hayek: Sim. Fiquei convencido de que, embora a ideia de uma moeda lastreada em commodities seja boa, é praticamente impossível de gerir. A ideia de acumular estoques reais de commodities como reservas é tão complexa e impraticável que simplesmente não pode ser feita.

Então, cheguei à conclusão de que a necessidade de se restituir papel-moeda em commodities reais só é necessária se você tiver que disciplinar uma autoridade monetária que, de outra forma, não teria interesse em manter sua moeda estável. Se você colocar a questão do dinheiro nas mãos de empresas cujos sucesso no negócio dependem em manter o dinheiro emitido estável, a situação muda completamente. Neste caso, não há necessidade de depender das obrigações deles em restituir papel-moeda em commodities; vai depender do fato de que eles devem regular a oferta de seu dinheiro para que o público aceite o dinheiro por sua estabilidade. Isto é melhor do que qualquer outra coisa.

Reason: A fórmula econômica keynesiana busca uma relação simbiótica quase perfeita com as forças políticas do estado de bem-estar social moderno. Em que ponto esse casamento pode ser rompido? Como os keynesianos podem ser derrotados politicamente?

Hayek: Eu realmente deveria começar com o próprio Keynes. Keynes se desesperou na década de 1920 com possibilidade de flexibilizar novamente os salários. Ele chegou à conclusão de que devemos aceitar os salários como são (sempre para cima, exigidos por sindicatos) e ajustar a política monetária à estrutura salarial existente. 

Isso, é claro, obrigou-o a dizer “não quero nenhuma restrição à política monetária porque tenho que ajustar a política monetária a uma situação determinada”.

Mas ele ignorou que, naquele exato momento, os sindicatos sabiam que o governo tinha a obrigação de corrigir o efeito da política sindical e, portanto, entramos numa inevitável espiral. Os sindicatos empurram os salários para cima e o governo precisa fornecer dinheiro suficiente para manter o nível de emprego a esses salários, e é isso que leva à espiral inflacionária. Isso surgiu de Keynes, de suas considerações práticas de curto prazo – que não podemos fazer nada sobre a rigidez dos salários.

De fato, os britânicos na década de 1920 quase tiveram sucesso. O extremamente doloroso, e tolo, processo de deflação quase teve sucesso no final dos anos 1920. Mas então eles ficaram assustados com o longo período de desemprego. Acredito que se tivesse durado um ano ou dois a mais, provavelmente teria funcionado.

Reason: Gunnar Myrdal, que foi premiado com o Prêmio Nobel em 1974 junto com o senhor, publicou recentemente um artigo defendendo a abolição do Prêmio Nobel de economia, aparentemente como uma reação à concessão do prêmio a Milton Friedman e a você. A declaração mais notável dele é a referência a você sobre sua “falta de preocupação”. Especificamente, você “certamente nunca esteve muito preocupado com considerações epistemológicas”.

Não apenas a declaração causa choque, considerando seus numerosos escritos sobre a própria questão da epistemologia (tanto na economia quanto em outros ciências), mas o seu próprio discurso durante a premiação do Nobel, testemunhado por Myrdal, estava centrado no assunto da metodologia econômica. Esta distorção de Myrdal é motivada por ignorância ou malícia? E isso serve como uma amostra do ambiente acadêmico geral em toda a Europa?

Hayek: Não, certamente é um caso extremo, combinado com uma arrogância intelectual que, mesmo entre economistas, é rara. Myrdal já se opôs a essas questões antes mesmo de Keynes aparecer. Seu livro sobre doutrinas e valores monetários saiu no final da década de 1920. Ele tem sua própria visão peculiar sobre esse assunto, a qual eu acredito estar errada. Seu livro nem mais é reproduzido agora. Acho que ele nunca foi um bom economista.

Reason: Então a posição de Myrdal não é típica? O ambiente intelectual e acadêmico é, em geral, muito mais aberto às suas ideias?

Hayek: Ah, sim, muito mais que Myrdal. E, claro, a geração mais jovem está aderindo à minha visão. De certa forma, eu diria que o grande problema ainda é metodológico, mas não aquele que Myrdal tem em mente. Acredito que a economia e as ciências de fenômenos complexos em geral, que incluem a biologia, psicologia e assim por diante, não podem ser modeladas segundo as ciências que lidam com fenômenos essencialmente simples, como a física.

Não se espante quando digo que a física tem fenômenos essencialmente simples. O que quero dizer é que as teorias que você precisa para explicar fenômenos na física necessitam de poucas variáveis. Isso pode ser verificado facilmente se você examinar as fórmulas em qualquer livro-texto de física: verá que nenhuma das fórmulas que estabelecem as leis gerais da física contém mais de duas ou três variáveis.

Você não pode explicar nada da vida social com uma teoria que se refira a apenas duas ou três variáveis. O resultado disso é que nunca podemos alcançar teorias úteis para prever efetivamente determinados fenômenos, pois você precisaria inserir na fórmula tantos dados específicos sem nunca saber quais são todos eles. Nesse sentido, nossa possibilidade de explicar e prever fenômenos sociais é muito mais limitada do que na física.

Agora, isso deixa os jovens mais ambiciosos insatisfeitos. Eles querem alcançar na ciência social a mesma precisão de previsão e o mesmo poder de controle que você obtém nas ciências físicas. Mesmo que eles saibam que não farão isso, eles dizem: “Nós devemos tentar. No fim das contas descobriremos”. 

Quando embarcamos nesse processo, queremos alcançar um controle de eventos sociais que seja análogo ao nosso controle de assuntos da física. Se eles realmente criassem uma sociedade guiada pela vontade coletiva do grupo, isto acabaria com o progresso intelectual. Porque iria impedir a utilização de opiniões demasiadamente dispersas sobre as quais se baseia a nossa sociedade e que só existem neste processo muito complexo que você não consegue dominar intelectualmente.

Reason: Em 1947, você fundou a Mont Pelerin Society, um grupo internacional de estudiosos do livre mercado. Você gostou do resultado?

Hayek: Ah, sim. O seu principal propósito foi alcançado. Eu percebi que cada um de nós estava descobrindo o funcionamento da verdadeira liberdade apenas dentro de seus campos restritos, e aceitando as doutrinas convencionais em todas as outras áreas. Então, reuni pessoas de diferentes áreas de interesse. Sempre que um de nós dizia: “Ah, sim — mas para lidar com os cartéis você precisa de regulamentação governamental”, e outro dizia: “Ah, não precisa! Eu estudei isso”. Foi assim que desenvolvemos uma doutrina consistente e círculos internacionais de comunicação.

Reason: O U.S. News & World Report fez uma reportagem especial no ano passado, na qual entrevistaram você e outros oito importantes cientistas sociais de todo o mundo, sobre a pergunta: “A democracia está morrendo?” 

O que eu achei mais interessante foi o fato de vários outros pensadores parecerem recitar passagens de O Caminho da Servidão na identificação da crise atual como resultado do envolvimento do estado de bem-estar em vastas áreas de nossas vidas privadas. Você vê esta tese ganhando mais adeptos acadêmicos? Podemos dizer que mais intelectuais estão começando a entender o conflito fundamental entre liberdade e burocracia?

Hayek: Sem dúvida, sim. Que as ideias estão se espalhando, não há dúvida. O que não posso avaliar é exatamente qual parte da elite intelectual já foi alcançada. Comparando como era a situação há 25 anos, em vez de uma única pessoa em alguns centros do mundo, agora existem dezenas em qualquer lugar que eu vá. Mas ainda é uma fração muito pequena das pessoas que opinam e, às vezes, tenho experiências muito deprimentes. Fiquei bastante desapontado duas semanas atrás, quando passei uma tarde na Livraria Brentano, em Nova York, e vi os tipos de livro que a maioria das pessoas lê. Isso parece não ter esperança; e quando você vê isso, perde toda a esperança.

Reason: Atualmente, você carrega a tocha da escola austríaca de economia, representando a grande tradição de Carl Menger, Bohm-Bawerk e Ludwig von Mises. Qual é a maneira mais importante pela qual os austríacos diferem de Milton Friedman e da Escola de Chicago?

Hayek: A Escola de Chicago pensa essencialmente em termos “macroeconômicos”. Eles tentam analisar em termos de agregados e médias, de quantidade total de dinheiro, de nível total de preços, de emprego total — todas essas magnitudes estatísticas que, penso, são uma abordagem muito útil e até bastante impressionante.

Veja a “teoria da quantidade monetária” de Friedman. Escrevi há 40 anos que tenho fortes objeções à teoria da quantidade, porque é uma abordagem muito grosseira que deixa muitas coisas de fora, mas rogo a Deus para que o público em geral nunca deixe de acreditar nela. Porque é uma fórmula simples que ele é capaz de compreender. Lamento que um homem sofisticado como Milton Friedman não a utilize apenas como uma primeira abordagem, mas sim acredite que ela representa tudo. 

Portanto, é realmente sobre questões metodológicas, em última análise, que diferimos.

Friedman é um positivista convicto que acredita que nada deve entrar em argumento científico, exceto o que é empiricamente comprovado. Meu argumento é que sabemos muitos detalhes sobre economia, e que nossa tarefa é colocar nosso conhecimento em ordem. Quase não precisamos de nenhuma informação nova. Nosso grande desafio é digerir todas as informações que já temos. Não nos tornamos muito mais sábios com novas informações estatísticas, embora obtenhamos informações sobre uma situação específica em certo momento. Mas, teoricamente, não acho que estudos estatísticos nos levem a algum lugar.

Reason: Você escreveu que a principal razão de a explicação keynesiana sobre desemprego ter sido aceita em detrimento da explicação clássica foi que a primeira poderia ser estatisticamente testada, enquanto a segunda não.

Hayek: Desse ponto de vista, o monetarismo de Milton e o Keynesianismo têm mais em comum um com o outro do que comigo.

Reason: Você conheceu Alexander Solzhenitsyn nas cerimônias do Nobel em Estocolmo. O que você achou dele?

Hayek: Eu confirmei minha opinião de elevada estima sobre o homem. Ele é uma figura muito impressionante, bem de acordo com sua obra. Mas não tive a chance de discutir com ele porque ele acabara de sair da Rússia e sua capacidade de se comunicar oralmente era muito limitada.

Reason: Que validade há na tese dele sobre o colapso do Ocidente?

Hayek: Eu acho que ele está indevidamente impressionado com certas características superficiais da política ocidental. Se ele de fato acredita que o que nossos políticos fazem é uma consequência necessária das opiniões geralmente mantidas no Ocidente, então ele realmente chegará a essa conclusão. Felizmente, penso que o que os políticos fazem não é uma expressão da profunda crença das pessoas mais inteligentes do Ocidente, e espero que Solzhenitsyn descubra em breve que existem pessoas que podem ver além do que é mostrado pelas políticas do Ocidente.

Reason: Seu professor, Ludwig von Mises, publicou o livro Socialism em 1922. Isto iniciou um debate que ainda está se desenrolando sobre se uma economia socialista seria logicamente possível. Os economistas socialistas, particularmente na Europa Oriental, agradeceram a Mises por suas críticas ponderadas e, em geral, se envolveram em uma discussão instigante com Mises, Lord Robbins e você durante o último meio século. Qual é o estado atual do debate?

Hayek: Eu sempre duvidei de que os socialistas conseguissem se sustentar intelectualmente. Eles melhoraram seu argumento de alguma forma, mas uma vez que você começa a entender que os preços são um instrumento de comunicação e orientação que incorporam mais informações do que as que temos diretamente, toda a ideia de que você pode obter a mesma ordem com base em planejamento centralizado e divisão do trabalho por decreto cai por terra. 

O mesmo é válido para a ideia de que você pode organizar distribuições de renda que correspondam a determinada concepção de mérito ou necessidade. 

Se você precisa de preços, incluindo os preços da mão-de-obra, para direcionar as pessoas para as atividades onde elas são demandadas, não haverá como ter outra forma de distribuição, exceto aquela determinada pelo livre mercado. Eu acho que intelectualmente não resta mais nada do socialismo.

Reason: As economias socialistas seriam capazes de existir sem a tecnologia, as inovações e as informações de preços que pegaram emprestado do capitalismo ocidental e dos mercados negros domésticos?

Hayek: Acredito que elas poderiam existir como algum tipo de sistema medieval. Elas poderiam existir dessa forma, sendo que a fome removeria boa parte da população. É tudo uma questão de por que uma economia não deveria continuar a existir. Qualquer avanço econômico que a Rússia tenha conseguido foi, é claro, alcançado usando a tecnologia desenvolvida pelo Ocidente. Eu sei que os russos seriam os últimos a negar isto.

Reason: Uma parte muito interessante da sua filosofia social é que valor e mérito são e devem ser duas concepções distintas. Em outras palavras, os indivíduos não devem ser remunerados de acordo com qualquer conceito de justiça, seja a ética Puritana ou o igualitarismo. Você acha que muitos defensores do livre mercado se enquadram nesse pensamento, de que valor e mérito deveriam ser igualados em uma “sociedade verdadeiramente moral”?

Hayek: Recentemente tem havido uma pequena mudança como resultado do meu ataque direto ao conceito de “justiça social“. A questão atual passou a ser se o termo “justiça social” tem algum significado e, é claro, se a justiça social é essencialmente baseada em algum conceito de mérito. Receio ter chocado meus amigos mais próximos ao negar que o conceito de justiça social tenha algum significado. Mas não fui convencido de que eu estava errado.

Razão: Bem, então por que não existe algo como “justiça social”?

Hayek: Porque justiça se refere a regras de conduta individual. E nenhuma regra de conduta imposta a indivíduos pode causar o efeito de distribuir as coisas boas da vida de uma determinada maneira. As coisas como elas são não podem ser justas ou injustas; é apenas justo ou injusto quando presumimos que alguém foi responsável por fazer tal coisa acontecer.

Reclamamos que Deus foi injusto quando uma família sofreu muitas mortes e outra família possui todos os filhos saudáveis e em segurança. Mas sabemos que não podemos levar isso a sério. Não queremos dizer que alguém realmente tenha sido injusto.

No mesmo sentido, um mercado que funciona espontaneamente, no qual os preços atuam como guias para a ação, não pode levar em conta o que as pessoas de algum modo precisam ou mereçam, pois este mercado cria uma distribuição que não foi projetada por qualquer pessoa, e algo que não foi projetado — ou seja, o mero estado das coisas como são — não pode ser considerado justo ou injusto. 

E a ideia de que as coisas devem ser projetadas de maneira “justa” significa, com efeito, que devemos abandonar o mercado e adotar uma economia planejada na qual alguém decide quanto cada um deve ter. E isso significa, é claro, que só podemos ter este arranjo ao preço da abolição completa da liberdade pessoal.

Reason: A Grã-Bretanha está inevitavelmente no caminho da servidão?

Hayek: Não, não inevitavelmente. Esse é um dos mal-entendidos. O Caminho da Servidão era para ser um aviso: “A menos que você conserte seus caminhos, irá para o diabo”. E você sempre pode consertar seus caminhos.

Reason: Que medidas políticas são possíveis hoje para reverter a tendência na Grã-Bretanha?

Hayek: Se você der a um corpo de interesses organizados, como os sindicatos, poderes específicos para usar a força para obter uma fatia maior do mercado, o mercado não funcionará. E isso é apoiado pelo público devido à crença histórica de que, no passado, os sindicatos haviam contribuído muito para elevar o padrão de vida dos pobres, e que, por isso, você deve favorecê-los. 

Enquanto essa visão prevalecer, não acredito que exista esperança alguma. Mas podemos induzir essas mudanças. Devemos agora ter esperanças quanto a uma mudança de atitude.

Receio que muitos dos meus amigos britânicos ainda acreditem, como Keynes acreditava, que as convicções morais dos ingleses os protegeriam contra esse destino. Isso não faz sentido. O caráter de um povo é tão moldado pelas instituições quanto as instituições são moldadas pelo caráter do povo. As atuais instituições britânicas estão fazendo de tudo para mudar o caráter britânico. Você não pode confiar em um “caráter britânico” inerente, salvando o povo britânico de seu destino. Mas você deve criar instituições nas quais os velhos tipos de atitudes serão revividos, e que estão desaparecendo rapidamente no sistema atual.

Reason: Então, realmente não há nada que o governo possa fazer antes de uma mudança na opinião pública?

Hayek: Você pode distinguir entre movimentos positivos e negativos. O governo certamente deve parar de fazer muitas das coisas que faz agora. Nesse sentido, depende de o governo deixar de fazer as coisas, e isso abriria a possibilidade de surgirem outros desenvolvimentos que você não pode orientar e dirigir. Tome como exemplo a queixa dos empreendedores britânicos serem ineficientes, preguiçosos e assim por diante. Tudo isso é resultado de instituições. Você rapidamente quebraria o empreendedor ineficiente se houvesse mais concorrência. E você logo descobriria que eles trabalhariam duro se fosse do interesse deles. É o conjunto de instituições que prevalece agora que cria as novas atitudes que são tão infensas à prosperidade.

Reason: Se o estado grande é realmente o culpado, por que a Suécia e muitos estados assistenciais da Escandinávia parecem estar prosperando?

Hayek: Não se pode generalizar. Suécia e Suíça são os dois países que escaparam dos danos de duas guerras e se tornaram repositórios de grande parte da capital da Europa. Na Suíça, ainda existe algum instinto tradicional contra a interferência do governo. A Suíça é um exemplo maravilhoso em que, quando os políticos se tornam progressistas demais, o povo realiza um referendo e prontamente diz: “Não!”

Reason: No entanto, a Suécia tem um sucesso razoável…

Hayek: Sim. Mas talvez haja mais descontentamento social na Suécia do que em quase qualquer outro país em que já estive. O sentimento de que realmente não vale a pena viver é muito forte na Suécia. Embora eles mal possam conceber coisas diferentes do que estão acostumados, acho que a dúvida sobre suas doutrinas passadas é bastante forte.

Reason: De 1948 até cerca de uma década atrás, a Alemanha Ocidental adotou políticas de livre mercado e experimentou uma recuperação econômica tão vital que seria considerada um “milagre alemão“. Ainda assim, os social-democratas estão no poder hoje, e alguns analistas americanos sugeriram que isso indica uma falha básica na filosofia ou estratégia da chamada Escola de Freiburg, o grupo de economistas de livre mercado que lideraram o “Milagre Alemão”. Quais erros eles cometeram e o que podemos aprender com o exemplo deles?

Hayek: Primeiro, a ideia de que os alemães agora são governados por um governo socialista está simplesmente errada. O atual chanceler alemão admite – talvez não publicamente, mas em conversas – que ele não é socialista. Em segundo lugar, até recentemente, os sindicatos alemães eram liderados por pessoas que realmente sabiam o que é uma grave inflação. E, até recentemente, tudo o que você precisava dizer aos sindicalistas alemães quando faziam reivindicações salariais excessivas é que “isso levará à inflação”. E então as demandas sumiam.

A prosperidade alemã se deve, em um grau muito alto, à razoabilidade dos líderes sindicais alemães que, por sua vez, se devem à sua experiência com a inflação.

Reason: Um grande colega austríaco, o falecido Joseph Schumpeter, escreveu Capitalismo, Socialismo e Democracia em 1942. Nesse livro, Schumpeter previu o colapso do capitalismo devido não à sua fraqueza (como Marx havia previsto), mas devido aos seus pontos fortes. Especificamente, a tremenda abundância econômica que aconteceria sob o capitalismo produziria uma era de burocratas e administradores substituindo os inovadores e empreendedores que tornaram tudo isso possível. 

Isto, por sua vez, minaria o tecido social sobre o qual repousa o capitalismo: que é uma ampla aceitação e respeito à propriedade privada. 

Como a tese de Schumpeter sobre a inerente instabilidade política do capitalismo se encaixa com suas próprias teorias em nosso caminho para a servidão?

Hayek: Bem, há alguma semelhança na natureza da previsão. Mas Schumpeter estava realmente usufruindo um paradoxo. Ele queria chocar as pessoas dizendo que o capitalismo certamente era muito melhor, mas que não seria permitido que durasse, ao passo que o socialismo é muito ruim, mas que estava prestes a acontecer. Esse era o tipo de paradoxo que ele simplesmente amava.

Por trás disso está a ideia de que certas tendências de opinião — que ele observou corretamente — eram irreversíveis. Embora afirmasse o contrário, em última instância, ele não acreditava no poder da argumentação. Ele acreditava que o estado de coisas obriga as pessoas a pensar de uma maneira particular.

Isso é fundamentalmente falso. Não existe uma compreensão simples sobre o que torna necessário que as pessoas, sob certas condições, acreditem em certas coisas. A evolução das ideias tem suas próprias leis e depende muito de desenvolvimentos que não podemos prever. Por exemplo, eu posso tentar mudar a opinião pública em uma certa direção, mas não ousaria prever em que direção ela realmente se moveria. Espero poder desviá-la moderadamente. Mas a atitude de Schumpeter era de total desesperança e desilusão quanto ao poder da razão.

Reason: Você é otimista quanto ao futuro da liberdade?

Hayek: Sim. Um otimismo qualificado. Acredito que uma reversão intelectual está a caminho, e há uma boa chance de que isso chegue a tempo antes que um movimento na direção oposta se torne irreversível. Estou mais otimista do que há 20 anos, quando quase todos os formadores de opinião queriam avançar na direção socialista. Isso mudou particularmente na geração mais jovem. Portanto, se a mudança chegar a tempo, ainda há esperança.

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Thomas W. Hazlett

Publicado em: https://cutt.ly/gm1PUzy

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