O fato de haver oposição política a algo tão básico ilustra nosso atraso
Nota do editor
Guilherme Boulos (PSOL) e Márcio França (PSB) querem rasgar o marco do saneamento. A lei está em vigor há dois anos e, desde então, os leilões de saneamento já chegaram aos pequenos municípios e movimentaram R$ 22 bilhões em investimentos privados.
Também pretendem impedir privatizações de empresas como a Sabesp, que está nos planos de Tarcísio de Freitas em São Paulo, e a gaúcha Corsan. (A privatização da CEDAE, por sua vez, já trouxe substantivas melhoras para os cariocas).
Abaixo, nosso artigo de 2020 explicando por que ser contra o marco do saneamento é ser a favor do atraso e da falta de higiene.
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No mês de julho de 2020, o novo Marco do Saneamento Básico foi finalmente sancionado pela presidência.
E analisar as dificuldades de aprovar essa agenda do século XIX no Congresso é um bom exemplo de como o estado funciona.
O início
O primeiro registro de saneamento no Brasil ocorreu em 1561, quando Estácio de Sá mandou escavar o primeiro poço para abastecer o Rio de Janeiro.
Com efeito, todo o período colonial foi marcado majoritariamente por ações individuais.
A partir da década de 1940, foram criadas autarquias e mecanismos de financiamento para o abastecimento de água, inicializando a comercialização dos serviços de saneamento. Isso se deu por meio da influência do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), hoje denominada Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).
Em 1971, foi criado o Plano Nacional do Saneamento. Só que, após quase 50 anos, 40% dos Municípios brasileiros ainda não têm acesso a esgotamento de acordo o IBGE — e a situação fica significativamente pior se olharmos para as regiões Norte e Nordeste.
A realidade atual
Ao todo, são cerca de 100 milhões de brasileiros sem acesso à coleta de esgoto, e outros 35 milhões sem água tratada.
São números dantescos.
As maiores responsáveis pelo descalabro são as estatais de saneamento dos estados: além de ineficientes, com os estados quebrados, não há dinheiro para muitos investimentos a curto prazo.
No Brasil, há cerca de 50 agências reguladoras de saneamento básico. Apesar disso, não há diretrizes bem estabelecidas para a criação de contratos de serviços de água e esgoto. Hoje, os contratos são realizados sem critérios concorrenciais e são totalmente burocráticos.
Além disso, nem sempre possuem metas e padrões técnicos para seguirem e garantirem um serviço eficiente. Por exemplo, apenas 1,67% dos contratos firmados com a Cedae no Rio de Janeiro possui planos definidos.
Um dos absurdos mais provincianos ainda existentes na administração pública brasileira é o contrato de programas. É um cheque em branco com fundos públicos, sem garantia de recebimento do que está se adquirindo. São feitos sem parâmetros, sem licitação, muitas vezes sem quaisquer metas para a prestação do serviço. São bons apenas para os funcionários das estatais, os políticos e as empreiteiras envolvidas (sempre presididas por amigos de políticos).
Esse arranjo é filho dos favores políticos, irmão do cabide de empregos, casado com a condescendência da miséria de pessoas que ainda vivem em meio às fezes.
O lobby corporativista feito pelas concessionárias estaduais, agências reguladoras e associações diretamente ligadas a elas e seus funcionários sempre foi contrário a qualquer modernização ou abertura do mercado que permitisse maior entrada de capital privado no saneamento básico. É a chamada bancada do atraso. Como consequência, só nos últimos dois anos, duas medidas provisórias – a 844 e a 868 – já caducaram.
Entre 2007 e 2016, empresas privadas cobriam apenas 6% dos municípios brasileiros. Mesmo assim, também eram responsáveis por 20% de todo o investimento no setor.
Hoje, temos ainda menos participação da iniciativa privada no saneamento. Uma pesquisa do IBGE divulgada recentemente mostrou que as empresas privadas estão presentes em 3,6% dos municípios para distribuição de água e em 3,1% para coleta de esgoto.
Ou seja: a esmagadora maioria territorial do país está sob os auspícios governamentais, com estatais má administradas e em contratos que, muitas vezes, sequer têm metas. Além disso, os estados estão quebrados financeiramente. Então, ainda que fossem realmente bem intencionados, simplesmente não há possibilidade de aportes para aumentar os investimentos.
As consequências da falta de saneamento básico
Se tivéssemos coleta de esgoto universal, 74,6 mil internações seriam evitadas por causa de doenças como diarréia, leptospirose e febre tifóide. E 56% desses casos prevenidos seriam na região Nordeste.
A água parada, armazenada pelos moradores, pode ser fonte de doenças como dengue, zika e malária, entre outras — e a baixa qualidade da água ainda dificulta a higiene pessoal.
Além disso, também são afetados o desempenho dos estudantes e a produtividade dos trabalhadores. Aqueles que moram em domicílios sem saneamento têm escolaridade 25,1% menor que aqueles com acesso integral e seus salários são 52,4% menores.
O ambiente também sofre com a falta de saneamento básico: diariamente são despejadas cerca de 5.715 piscinas olímpicas de esgoto na natureza.
Já uma pesquisa recente, realizada nos 31 principais municípios litorâneos no Brasil, apontou que 42% das praias são impróprias para banho. Foram registrados mais de mil coliformes fecais para cada 100ml de água por semana, o que prejudica não só o meio ambiente, mas também o turismo.
As promessas do Novo Marco do Saneamento
Se nada fosse feito — ou seja, se esse status quo fosse mantido —, a perspectiva é a de que só haveria universalização do saneamento, algo que deveria ser básico, em 2060, segundo uma projeção da Confederação Nacional da Indústria.
Já se o novo Marco for efetivamente respeitado, as perspectivas são bem mais auspiciosas.
O Marco não privatiza o saneamento e a distribuição de água. Porém, ele passa a obrigar que contratos sejam feitos sob modelo de concessão, abrindo espaço para empresas privadas e novos investimentos no setor. Longe do ideal, mas bem melhor que o atual.
Além disso, poderá haver concorrência até mesmo entre estatais do saneamento de outros estados, com elas podendo concorrer nas licitações (hoje, isso é proibido). A necessidade de concorrência traz a tão desejada abertura de mercado e a possibilidade de investimento capital externo, inclusive nas empresas públicas.
Projeta-se que será possível atrair R$ 700 bilhões em investimentos nas próximas duas décadas, o que permitiria a 99% dos brasileiros terem acesso a água e 90% terem saneamento básico adequado.
A excrescência dos contratos de programa, citados acima, também é abolida. Contratos que não estiverem realizando uma cobertura aceitável (de ao menos 60% de saneamento e de 90% de água) caducam. Dessa forma, as cidades deverão abrir licitação, dentro dos critérios definidos pelo projeto.
A legislação também prevê a concessão de cidades em blocos micro-regionais. Isso evita aquela típica preocupação de que a prestação de saneamento básico pela iniciativa privada deixará municípios menores e regiões afastadas sem investimentos.
Fala-se que “as empresas irão querer só o filé, sem o osso”. Mas a legislação garante que a empresa que assuma o contrato preste serviços a todos os municípios que integram.
Ou seja, só estarão disponíveis “filés com osso.
O meme “não é o ideal, mas acontece” se aplica aqui. A alternativa política seria manter tudo como está e, na melhor das hipóteses, esperarmos ao menos 4 décadas para que os mais pobres tenham acesso a água potável e saneamento básico.
Havia propostas que permitiriam uma universalização mais rápida, mas acordos políticos desidrataram o projeto para viabilizar sua aprovação: a preocupação foi restringir as taxas cobradas pelas concessionárias.
O desinteresse dos políticos com a saúde da população
Em 2013, foi criado o novo Plano Nacional do Saneamento Básico, mas a falta de recursos próprios das concessionárias estatais e as dificuldades orçamentárias de estados e municípios restringiram maiores investimentos no setor.
Em 2018, foi feita uma Medida Provisória (MP), permitindo justamente isso, mas ela caducou por falta de interesse do Congresso. Então, foi feita outra MP com essa intenção. Ela também caducou no Congresso, em uma resposta do legislativo a Bolsonaro, como represália a disputas políticas.
Ainda em 2019, houve uma briga de egos entre deputados e senadores para decidir por qual Casa Legislativa começaria a tramitação do novo projeto. Mais tarde, ele foi aprovado na Câmara dos deputados no fim do ano.
Seis meses se passaram até ele ser votado no Senado e, às vésperas da votação, partidos de esquerda e corporações se manifestaram contra, como se a água com terra no Rio de Janeiro meses antes não fosse o suficiente para convencê-los.
Irônico também é a Rede Sustentabilidade, um partido que se diz preocupado com a causa ambiental, e que se posicionou contra o projeto, espalhando inclusive fake news a respeito do tema.
Agora, contraste isso com a tramitação do Projeto de Lei (PL) das Fake News. O PL teve aprovação relâmpago no Senado, sem passar por nenhuma comissão e o relatório final foi apresentado poucos dias antes da votação.
Vale lembrar que a discussão ainda não acabou. Após a aprovação, o presidente Jair Bolsonaro vetou acertadamente um dispositivo que possibilitaria a renovação por mais 30 anos dos contratos atuais e dos vencidos recentemente. Agora, há pressão de parlamentares para que o veto seja derrubado, ou ao menos utilizado como moeda de troca para outros projetos de seus interesses.
Além disso, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) entrou com ação no Supremo Tribunal Federal, questionando a lei, judicializando a reforma, tal como ocorreu com a reforma trabalhista, com o fim do imposto sindical e com a reforma da previdência. Um dos pontos contestados é a obrigatoriedade das licitações para contratação dos serviços de saneamento — isto é, o ponto central da nova lei.
Para concluir
Este foi o caminho tortuoso para aprovar uma agenda que é do século XIX.
Como diz o economista Thomas Sowell, “os políticos não estão tentando resolver os nossos problemas. Eles estão tentando resolver seus próprios problemas — dentre os quais ser eleito e reeleito são número 1 e número 2. O que quer que seja o número 3 está bem longe atrás”.
Infelizmente, no Brasil, projetos importantes, mas impopulares, como a Reforma da Previdência e as decisões sobre a privatização de subsidiárias da Petrobrás, assim como a flexibilização trabalhista devido à pandemia, demoram demais para avançarem ou são completamente abandonados.
Não é necessário ser liberal ou libertário para defender medidas que efetivamente acelerem a universalização do saneamento básico, um dos serviços mais elementares para qualquer sociedade que se queira civilizada.
Tampouco é controverso concluir que a solução óbvia é permitir mais concorrência e mais investimento privado em um setor até então exclusivamente estatal.
Oferecer mais segurança jurídica para a entrada de capital privado e acelerar este processo também é algo óbvio.
Saneamento é básico.
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Por Luan Sperandio
Publicado originalmente em: https://bityli.com/3JVkZ