E como surgiram os cartéis neste setor
A eletricidade surgiu no Brasil em 1879, exatamente na mesma época em que também era adotada nos EUA e na Europa para fins comerciais.
O período de 1880—1930 foi dominado pelo setor privado, sendo que as principais empresas no início eram a São Paulo Tramway, Light and Power Company — mais conhecida como Light São Paulo — e a The São Paulo Gás Company.
A Light era uma empresa canadense e se estabeleceu no Brasil em 1899. Já a The São Paulo Gás Company foi fundada em Londres em 1869, e teve sua autorização para operar no Brasil concedida a 28 de agosto de 1872. O contrato de concessão assegurava os serviços de iluminação urbana a gás, realizados por meio de lampiões.
A Light, tão logo se estabeleceu no Brasil em 1899, procurou servir inicialmente os bairros centrais e, portanto, mais populosos da cidade. Era um serviço caro, que envolvia desde a compra de cabos até a manutenção das próprias geradoras. Todo o custoso aparato envolvia desde a usina geradora, os fios de distribuição, até os postes de iluminação
Enquanto a Light avançava pelos bairros centrais, a municipalidade mantinha o privilégio da concessão do serviço de iluminação pública para a São Paulo Gás Company nos lugares já ocupados pela empresa inglesa.
A disputa entre as duas empresas viria a ocorrer no âmbito da iluminação particular. Nesse quesito, a Light — segundo a renovação do contrato da São Paulo Gás Company, feito em 1897 — poderia passar a oferecer serviços de iluminação elétrica para as residências enquanto a São Paulo Gás Company forneceria iluminação por meio dos lampiões de gás.[1]
Ou seja, não foi o governo, mas sim o setor privado quem trouxe a energia elétrica para a casa das pessoas no Brasil. Com efeito, já havia iluminação elétrica em algumas partes do Brasil, majoritariamente comercial; porém, quem ofereceu esse serviço para as casas particulares foi a Light, empresa privada.
A disputa entre as empresas e suas tecnologias seria acirrada até o início da década de 1910, quando inovações nos equipamentos de iluminação elétrica, com a substituição das lâmpadas de filamento de carvão por aquelas de filamento de tungstênio, tornariam a concorrência no setor elétrico mais logisticamente difícil.
Esse foi mais um fato a que devemos agradecer, primeiramente, aos cientistas e depois ao mercado. A concorrência para oferecer melhores serviços trouxe um enorme avanço, que foram as lâmpadas com filamento de tungstênio, muito mais duráveis e estáveis que as lâmpadas de filamento de carvão.
Light versus CBEE
A Light inicialmente conseguiu estabelecer um “monopólio” na distribuição de energia elétrica na cidade de São Paulo após fazer com que os produtos da São Paulo Gás Company — cuja especialidade era o gás — ficassem restritos apenas à distribuição de gás para uso doméstico.
Porém, a energia elétrica ainda não chegava às áreas mais afastadas, e as empresas municipais de iluminação e geração de energia passaram também a promover obras para substituir a iluminação a querosene pela elétrica, via usinas a vapor ou pequenas hidrelétricas.
A Light notou a expansão dessa produção de energia elétrica e começou uma campanha para evitar que essa distribuição de energia fosse feita por outras empresas, ou mesmo por indústrias independentes. Ela tentou criar um autêntico monopólio fazendo lobby perante o governo para ganhar novos serviços de concessão exclusiva. No entanto, algumas pequenas empresas lutaram contra esse pedido da Light. Uma das principais empresas a se opor a esse lobby da Light foi a Klabin — Companhia de Fabricação de Papel.
Foi nesse cenário que a Companhia Brasileira de Energia Elétrica (CBEE), dos empresários Cândido Gaffrée e Eduardo Guinle, entrou em cena, em 1905.[2]
A companhia foi criada com a intenção de fornecer energia para as principais capitais do país. Os empresários já haviam construído uma hidrelétrica próxima à cachoeira de Itatinga, que fornecia energia elétrica ao Porto de Santos. O excedente era vendido a alguns locais ainda não abastecidos de São Paulo. A empresa queria mostrar que, caso conseguisse a autorização do governo, poderia fornecer energia para a cidade de São Paulo a preços baixos, ajudando especialmente as áreas não atendidas da cidade.
A Light, embora ciente dos planos dessa nova empresa, não acreditava que a CBEE teria condições de oferecer energia para São Paulo tão rapidamente, pois a empresa canadense detinha o privilégio concedido pelo governo — monopólio — de oito anos de distribuição elétrica.
Porém, devido às propostas da CBEE, boas demais para ser ignoradas, o prefeito de São Paulo aprovou a entrada da empresa de Guinle no mercado, causando espanto à Light. Em medida tomada em 25 de fevereiro de 1909, e publicada dois dias depois no jornal O Estado de São Paulo, o então prefeito Antônio Prado autorizava a companhia Docas de Santos a distribuir energia elétrica para a capital:
Um telegrama de São Paulo nos trouxe a auspiciosa notícia, que o eminente prefeito da capital, o Sr. Conselheiro Antônio Prado, deu a Guinle & Comp. a concessão para o fornecimento de energia e luz elétrica. O sistema adaptado da legislação para estes serviços da capital paulista é o da livre-concorrência.
Nas palavras de Alexandre Macchione, “Deste momento em diante, uma grande luta comercial e política foi travada pelas duas empresas para a tentativa de consolidação de um novo mercado, por parte da Docas, enquanto a Light buscava manter o monopólio sobre a distribuição e geração de energia para a capital paulista. O conflito entre as empresas, entre o capital nacional e o capital estrangeiro, invadiu a Câmara e extravasou pelos meios de comunicação, levando a população às ruas!”
Enquanto a Light promovia sua propaganda, exaltando o desenvolvimento e as novas tecnologias trazidas do estrangeiro, a Docas de Santos (CBEE) tentava criar um sentimento nacionalista de defesa das empresas brasileiras, estratégia também utilizada no Rio de Janeiro com a aliança com políticos nacionalistas.
Aqui já é possível testemunhar uma das artimanhas favoritas a que muitos empresários recorrem: pedem para o governo taxar ou mesmo bloquear produtos estrangeiros de melhor qualidade sob a justificativa de “proteger o mercado interno”.
A competição entre as empresas sempre foi acirrada, tanto no campo político quanto no campo econômico. A empresa canadense contava com um capital de 10 milhões de dólares em São Paulo, 6 milhões do Rio de Janeiro e 3,5 milhões na Bahia, enquanto a CBEE tinha por volta de 9 milhões de dólares. Havia também a Companhia Paulista de Força e Luz com 645 mil dólares em 1912.
É possível imaginar a ferocidade da concorrência e, consequentemente, os vultosos investimentos que as empresas faziam para tentar se manter à frente.
O principal campo de atuação das empresas foi em São Paulo, onde a Light tinha sua maior concentração de capital e a CBEE seu maior ponto de distribuição, favorecida por ter o controle do Porto de Santos.
Vale ressaltar que, ainda em 1904, antes de as duas empresas irem para o embate, os empresários da Light entraram em contato com os presidentes da então recém-formada Guinle & Co para discutir um acordo de implantação de uma empresa de eletricidade na capital. No entanto — e em uma clara refutação ao argumento favorito dos intervencionistas — Eduardo Guinle FiIlho recusou as propostas, acreditando que a família poderia oferecer melhores serviços que os estrangeiros.
Embora o mercado da época não fosse o mais livre possível, isso mostra que, quando se permite a concorrência, o surgimento de cartéis é muito menos provável do que quando há regulamentações do governo.
A partir daí, começou uma inimizade entre os dois grupos, a qual dividiria a opinião pública.
O Jornal do Commercio de São Paulo era o principal porta-voz da Guinle & Co, juntando-se ao A Notícia contra a Light e os seus métodos de ação; e na defesa da Light, os jornais A Gazeta e a A Platéia.
A Guinle & Co, maior acionista da CBEE, instalou, em 1911, na então recente Belo Horizonte, uma usina de transmissão com capacidade de 3.600 cavalos e uma linha de transmissão de 40 km de extensão para fornecer energia de uso público e privado. Em São Paulo, a CBEE construiu a usina de Itatinga e, posteriormente, a usina de Itapanhaú. A energia, em 1912, era suficiente para abastecer o Porto de Santos e ainda sobrava um excedente que poderia ser vendido para outras localidades. Tentando se beneficiar disso, os Guinle tentaram vender esse excedente de energia para a cidade de São Paulo, porém suas ações foram bloqueadas pela Light, que, desde 1901, dominava o mercado de fornecimento de energia na capital do estado, impedindo a entrada de concorrentes no setor.
Vale ressaltar essa inversão de papel da Light. Quando a empresa tentava ingressar no mercado, defendia veemente a livre concorrência como forma de beneficiar as pessoas. Agora, tão logo surgia uma forte concorrente, a Light se apoiava em ações jurídicas para conseguir o monopólio do setor e barrar a entrada dessa concorrente
Nesse sentido, os jornais A Gazeta e A Platéia, ambos pró-Light, publicavam artigos que utilizavam sátira e ironia para reverter os argumentos do grupo nacional Docas de Santos. No artigo “Privilégios ou livre-concorrência? Autoridade insuspeita – nunca se é traído…“, o jornal A Platéia se posicionava:.
Bem diz o ditado: “da discussão surge a luz”, o que ao caso da Light x Guinle se ajusta como uma luva em mão de moça bonita. Nunca chegamos a compreender como um serviço público indispensável, que depende da ocupação do leito das ruas e do emprego de grandes capitais, pudesse ser entregue aos azares da livre-concorrência, como qualquer pequeno negócio de bugigangas. Pareceu-nos sempre mais conforme a boa razão e conveniente ao interesse público, que fosse esse serviço confiado a uma empresa que o executasse em condições estabelecidas por contratos, com obrigações de todos servir nos termos estipulado.[3]
A Light concentrou suas ações nas metrópoles de Rio de Janeiro e São Paulo. Sabendo que não poderia concorrer diretamente com a empresa canadense, a CBEE procurou expandir sua atividade territorial, chegando a Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul.[4]
De novo: não foi o governo quem começou a oferecer serviços essenciais à população, mas sim o mercado em sua busca pelo lucro. Essa expansão deu à CBEE um enorme crescimento em seus lucros: as receitas totais da empresa brasileira pularam de 54.644 contos de reis para 450.123 contos de réis, entre 1909 e 1913. Entretanto, a Light, que comandava o mercado elétrico de São Paulo, aumentou seus lucros de 1.173.906 contos de reis em 1909 para 2.679.372 contos de réis em 1913.[5]
Não demorou muito para a CBEE perceber que, continuar se expandindo apenas para cidades secundárias, como havia feito em Niterói, não faria efeito contra a poderosa Light, que atuava com força nas capitais. Tentando ganhar uma batalha judicial, a CBEE pressionou a empresa canadense.
Vendo que poderia perder essa batalha, a Light baixou as tarifas de força e luz: de 800 para 500 réis o preço máximo para a luz elétrica do kwh, e de 700 para 300 réis os máximos de força elétrica.[6]
Agora os papeis se invertem e a CBEE (Docas de Santos) passa a acusar a Light de “deslealdade”. O argumento era o de que a Light só reduziu seus preços porque a CBEE se disponibilizou a fornecer o mesmo serviço por menores preços. Até então, os preços apresentados pela Light eram tidos como mínimos:
Ao anunciar-se agora que outra firma pedira licença para concorrer com a Light, imediatamente os diretores dela precipitaram-se daqui para São Paulo e ofereceram fazer grandes reduções, contanto que não se desse a concessão. (…) Pelo simples fato de prometer grandes reduções de preço, quando até aí estando sozinho em campo, sempre tinha afirmado que os seus preços já eram mínimos, a Light provava mais uma vez, redundante e pleonasticamente, a sua desonestidade.[7]
Nessa época, a empresa de Guinle ficou muito próxima da vitória, chegando até mesmo a anunciá-la: “é que a concessão agora foi feita pelo Dr. Antônio Prado”.[8]
Como informavam os jornais da época, os preços oferecidos pela Docas eram realmente muito mais rentáveis: para a força, oferecia o serviço a 70 réis, enquanto a Light estava oferecendo a 300 réis; e para a luz particular, oferecia a 200 réis, enquanto a Light distribuía por 500 réis.[9]
Após todas as propostas apresentadas, a CBEE ganhou uma concessão de 4 meses para provar que poderia fazer um serviço melhor que o da Light. Assim foi publicada a notícia no jornal O Estado de São Paulo, de 13 de março de 1909:
“[Eu, o prefeito Antônio Prado] aprovo a autorização demandada, conforme a Lei nº 407, de 21 de Julho de 1899, estabelecendo o regime de livre-concorrência com relação aos serviços de transmissão e distribuição de energia elétrica e de iluminação elétrica desta cidade e de seus subúrbios, a condição que a presente concessão será subordinada a aprovação das plantas, áreas e projetos de todos os trabalhos que serão executados (…) no prazo máximo de quatro meses”.
Novamente, as empresas se centraram na batalha jurídica, na qual a Light procurava anular a utilização de cachoeiras da CBEE. No final, os Guinle saíram vitoriosos, mas a Light, agora baseando-se na Lei nº 407, de 21 de julho de 1899 (citada acima), a qual reafirmava o espírito da livre-concorrência, tentou reverter a perda.
O problema era que essa lei era passível de diferentes interpretações. Segundo a Light, conforme o artigo 12 da citada lei, a prefeitura tinha o direito absoluto de conceder autorizações da mesma natureza nas mesmas áreas de concessão, excluindo aquelas cujos lugares já haviam sido ocupados.[10] Se essa interpretação fosse levada ao pé da letra, a Light ficaria com todo o controle de fornecimento da energia à cidade.
A batalha judicial continuou intensa, fazendo com que a CBEE procurasse novos argumentos para entrar no mercado, relatando que os preços máximos cobrados pela empresa nacional eram de 200 réis o kwh para os serviços de luz e 100 réis para kwh para as pequenas indústrias e para o uso doméstico. Enquanto isso, os preços da Light eram de cerca de 375 réis o kwh para os consumidores de energia e de 250 réis o kwh para o consumo de pequenas indústrias e uso doméstico.[11]
O jornal O Estado de São Paulo questionava a concessão de 50 anos à empresa canadense, argumentando que seus pretextos eram falsos. Apesar de todas as acusações da CBEE, apesar das vantagens oferecidas e apresentadas aos meios de comunicação, apesar dos preceitos da livre-concorrência na legislação brasileira, e apesar da constante luta dentro da Câmara Municipal para evidenciar os benefícios que um sistema de concorrência poderia trazer para a cidade, a Light, novamente, apareceria com boa vantagem nos pleitos decisivos.
Em primeiro lugar, o então prefeito Raymundo Duprat era velho aliado da empresa canadense [12] e, em segundo lugar, mais uma vez a Câmara Municipal de São Paulo mantinha uma forte base aliada pró-Light.
Foi um golpe muito duro para a CBEE ficar de fora dos grandes centros demográficos; e, com a unificação da Rio Light e da São Paulo Light numa mesma companhia, juntamente do monopólio garantido pelo estado, tornou-se impossível para a CBEE se manter no mercado. Isso acabou forçando a Companhia Brasileira de Energia Elétrica a fazer reuniões com os dirigentes da companhia canadense para vender parte de seus ativos para a Light.
Em 1915, com a ampliação da concessão da Light no Distrito Federal, estava claro para os empresários nacionais que não seria mais crível a justificativa da livre concorrência para adquirir parcelas dos mercados das principais capitais brasileiras. Ademais, com o advento da Primeira Guerra Mundial e o subsequente encarecimento da importação de materiais em conjunto com uma ligeira redução no consumo de energia elétrica tornavam menos interessantes os investimentos nesse setor.
A CBEE ainda conseguiu se manter, a duras penas, como razão social, até 15 de maio de 1927, quando foi adquirida pela American & Foreign Power Company (AMFORP).
Conclusão
Mesmo com uma concorrência pequena e continuamente tolhida pelo estado, que sempre privilegiava suas empresas favoritas (ou seja, aquelas com mais capacidade de lobby), o setor elétrico brasileiro se desenvolveu e se expandiu pela ação concorrencial de empresas privadas. Os preços caíam (ao contrário do que ocorre hoje) e a qualidade dos serviços só aumentava.
Não fossem os privilégios concedidos pelo estado, a concorrência seria ainda mais acirrada.
Paradoxalmente, em um país de forte ranço nacionalista, o fim da CBEE ocorreu justamente por causa de privilégios governamentais concedidos a uma concorrente estrangeira. Mais um exemplo de como a intromissão estatal causa prejuízo à sociedade.
Segundo Alexandre Macchione:
De maneira geral, as duas primeiras décadas do século XX foram decisivas para a consolidação do setor de energia elétrica na cidade de São Paulo. A chegada da Light ao mercado paulista, num contexto de pouco regulamentação, permitiu que a empresa estrangeira avançasse de forma surpreendente pela capital, conquistando o monopólio de todos os serviços urbanos num período de uma década.
O papel da Câmara Municipal, que inicialmente era de intermediário nos conflitos para aquisição das concessões dos serviços, foi tornando-se mais ativo na fiscalização da qualidade dos serviços. A década de 1920 foi, portanto, o momento em que o discurso hegemônico de um estado ausente da prestação de serviços vai se transformando, possibilitando que, anos mais tarde, um estado centralizador pudesse regular firmemente os serviços públicos.
Victor Hugo Lima do Nascimento
Nota do Editor: o artigo acima faz um resumo da monografia de Alexandre Macchione Saes, professor doutor da Universidade Federal de Alfenas (MG). Toda a bibliografia está disponível na monografia original.
Publicado anteriormente em: cutt.ly/ulmtbK7