Uma das frases atribuídas ao ditador Josef Stálin (foto) é: “Uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”. Essa sentença representa perfeitamente a banalização dos flagelos e o endurecimento das almas humanas diante de adversidades gigantescas. Pode-se traçar um paralelo para os tempos atuais e arriscar que isso começa a ocorrer em relação à pandemia do coronavírus.
A cidade de São Paulo mostra índices cada vez menores de isolamento. As pessoas começam a confraternizar com amigos – pelo menos nesse estágio ainda envergonhadas – e ganham as ruas para refazer suas atividades sociais. Entramos naquela fase em há uma exaustão psicológica diante da quarentena.
No início do isolamento, em debate virtual promovido por MONEY REPORT, o psiquiatra e psicanalista Jorge Forbes disse que o grande desafio da sociedade era transformar o terror em medo. O terror, segundo ele, seria algo irracional e provocado pelo desconhecido – era exatamente como a população se sentia diante do coronavírus em seus estágios iniciais. Já o medo, que substituiu o terror da primeira fase, é algo racional e pode ser confrontado com argumentos lógicos. Deve ter sido isso que aconteceu na mente das pessoas – o domínio do terror pela mente, substituindo-o pela racionalidade do medo.
Há um volume crescente de gente nas ruas e conversando nas calçadas. O avanço constante e firme do contingente de vítimas fatais foi endurecendo corações e mentes. Hoje, quando passamos da marca de 4 000 mortes em todo o Brasil, as pessoas já não ligam tanto para as estatísticas que chegam até nós aos finais de tarde.
Nesse sentido, a crise política que acometeu o governo com a saída de Sergio Moro do Ministério fez a maioria da população a ignorar a pandemia, pelo menos por alguns dias, e discutir fervorosamente outro assunto. As redes sociais, em consequência disso, pararam o debate sobre se a quarentena deve ser ou não relaxada em função das necessidades econômicas. De quinta-feira até hoje, o assunto dominante foi Moro, Jair Bolsonaro e os novos nomes que devem compor o governo – com espaço de sobra para a tropa de choque bolsonarista achincalhar o ex-ministro através de toda a espécie de xingamento digital.
Temos de enfrentar a realidade: a tragédia foi banalizada. Isso faz parte do comportamento humano e tem algum paralelo com o tema que é estudado no livro “Em Busca de Sentido”, do psicólogo austríaco Victor E. Frankl. Judeu, Frankl padeceu em campos de concentração durante a Segunda Guerra e usou essa experiência para escrever um best-seller que ultrapassou as 100 edições, traduzidas em diversas línguas.
Frankl mostra que os limites humanos são colocados à prova enquanto se enfrenta uma tragédia atroz, como a vivida por ele em Auschwitz. Ele se recorda, por exemplo, de ter lido em compêndios médicos que uma pessoa não conseguiria sobreviver a um determinado número de horas de privação de sono. Pois ele percebeu que isso simplesmente não era verdade ao ficar insone, por tortura psicológica, durante dias. Outra observação: pessoas que tinham o sono leve simplesmente dormiam de forma pesada mesmo dividindo um andar de beliche com outros oito colegas, alguns deles roncando num volume máximo.
O que une essas duas situações, o campo de extermínio e a pandemia? Aqueles que vivem os dois cenários não se prendem à morte. Seu foco é, isto sim, na vida.
Enquanto as vítimas do nazismo era colocadas a provações e suplícios inimagináveis, os isolados pela pandemia e oriundos da classe média têm à disposição todos os confortos da vida moderna. E, ainda assim, não conseguem ter disciplina e se privar do contato social. O número de vítimas só cresce e o comportamento do vírus é imprevisível, atingindo muita gente fora do grupo de risco. Mesmo assim, as pessoas querem se encontrar com os amigos e promovem, silenciosamente, uma desobediência civil.
Sob o ponto de vista pragmático, não há muito o que fazer, a não ser que governos estaduais e prefeituras promovam uma quarentena obrigatória, nos moldes italianos e espanhóis. Mas, se isso ocorrer, a iniciativa estará fadada ao fracasso. Se as pessoas não estão aceitando permanecer isoladas depois de quarenta dias, esse sentimento só vai crescer daqui para a frente.
As autoridades devem criar um plano de contingência a toque de caixa, pois o isolamento vai despencar daqui para frente. Alguma providência precisa ser tomada, nem que seja a obrigatoriedade no uso de máscaras de proteção, medida que várias cidades já adotaram. Vamos dizer que shoppings, lojas, bares e restaurantes continuem fechados. As pessoas driblarão a proibição assim mesmo. Lembram-se da Lei Seca, em vigor nos anos 30 nos Estados Unidos? O consumo de álcool foi proibido em todo o país. Mesmo assim, o número de “speakeasies”, bares sem placa na rua e escondidos das autoridades, era gigantesco e a oferta drinks de procedência duvidosa idem.
Por enquanto, as pessoas estão se encontrando nas casas de amigos. Se as regras de isolamento forem apertadas ou o prazo final da quarentena for esticado, veremos a criação de restaurantes e bares em residências particulares, sem controles de segurança ou higiene. Tudo isso porque as pessoas querem correr o risco, pois estão fartas da quarentena, e muitas delas acham que a curva de contágio pode provocar um colapso no sistema de UTIs em apenas algumas cidades. Estão certas? Talvez não. Diante da dúvida, de qualquer forma, as autoridades em saúde pública preferem desaconselhar o fim do shutdown.
Mesmo assim, o problema persiste. Quando as pessoas chegam a seu limite – e isso está próximo de acontecer – elas se comportam de forma egoísta, replicando um comportamento que pode ser resumido numa outra frase do ditador Stálin: “O que é meu é meu, mas o que é vosso é negociável”.
Uma resposta
“Uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”.
O autor distorce completamente o sentido da frase, ao seu gosto, parecendo querer usá-la para endossar um estereótipo. O sentido dela é justamente a valorização da vida em sua singularidade, pois, quando é divulgado em números as mortes em massa – como é comum nas coberturas dos veículos de comunicação de massa de todos os regimes, tende a se banalizar.