Nesta semana, a Microsoft anunciou que o seu navegador pioneiro, o Internet Explorer, será desativado até 21 de agosto de 2021 – daqui a exatamente um ano. Com uma participação cada vez menor de mercado e perdendo de lavada para o Chrome, do Google, o IE foi oficialmente cancelado. Daqui para frente, os esforços da empresa fundada por Bill Gates serão concentrados em cima do Edge, um programa teoricamente mais fácil de customizar e atualizar.
O cancelamento do Explorer me trouxe à memória um momento importante da minha carreira, ocorrido na metade dos anos 1990, quando a internet engatinhava no país. Eu trabalhava na Editora Abril, que então iria lançar um serviço online. Procurávamos, então, vários parceiros. E fomos bater à porta, claro, da Microsoft.
Chegando lá, descobrimos que a Microsoft estava imersa num projeto chamado Blackbird, que pretendia criar uma espécie de “Gatesland” dentro da web, recheada de conteúdos exclusivos. Evidentemente, eles queriam a Abril como parceira de conteúdo dessa empreitada. Perguntei se nós poderíamos estar nessa plataforma e no resto da internet. A resposta foi não. Então, eu disse:
– Isso quer dizer, como disse Henry Ford, que o “bird” pode ser de qualquer cor, desde que seja “black”?
Todos riram com o gracejo, mas a conversa não avançou. Começamos a buscar novos parceiros de tecnologia. E fomos até a sede da então novata Netscape, em Mountain View, no Vale do Silício. A conversa foi ótima e conseguimos um bom acordo. Poderíamos distribuir os softwares de navegação da empresa – na época, os mais interessantes e populares da web – ao custo de um dólar a cópia. Isso trazia algum impacto no nosso business plan, mas estávamos dispostos a pagar o preço, já que não havia outro fornecedor. Quando estávamos prestes a assinar o contrato com a Netscape, a Microsoft nos procurou novamente. Bill Gates havia desistido do projeto Blackbird. E, rufem os tambores, iria distribuir um programa concorrente do Netscape de graça! Para nós, era música para os ouvidos.
Mas havia um problema.
Corria o ano de 1995 e a Microsoft tinha lançado o Windows 95. Só que cerca de 90 % (ou mais) dos computadores brasileiros continuavam a rodar com o velho Windows 3.0 de guerra. A Microsoft, então, lançaria duas versões para o Internet Explorer: a 2.0, de 16 bits, para usuários de Windows 3.0. E a 3.0, de 32 bits, para quem tivesse Windows 95. Até aí, tudo parecia OK. Só que apenas os programas 3.0 poderiam utilizar um recurso chamado “frame”. Hoje, isso parece ridículo. Mas, naquela época, sem esse recurso, era impossível criar duas janelas simultâneas e viabilizar um chat. Sem chat, não haveria como lançar um serviço online. Um verdadeiro dealbreaker.
Perguntei ao Mauro Muratorio Not, que era presidente da divisão brasileira da Microsoft na época, se ele não poderia ordenar que se fizesse uma versão do IE 3.0 de 16 bits para o mercado brasileiro. A resposta foi negativa. Só havia uma pessoa que poderia dar essa ordem na empresa. Eu perguntei quem seria esse indivíduo. Ele disse, sorrindo:
– Bill Gates.
Fiquei desolado. Isso jamais iria acontecer. Mas Mauro me disse:
– Você é um cara de sorte. Bill Gates estará no Brasil na semana que vem. Eu dou um jeito de você falar com ele.
Saí da reunião apreensivo. Eu teria de convencer o dono da Microsoft, um dos homens mais poderosos do planeta, a mudar sua estratégia global de distribuição de softwares e fazer uma exceção ao Brasil para privilegiar o meu projeto. Uma semana se passou. Fui à casa onde um jantar seria servido em homenagem a Bill Gates. Nos organizamos informalmente em rodas, num grande salão. Lembro que, na minha roda havia o presidente do Citibank no Brasil e o da Andersen Consulting, atual Accenture. Depois de certo tempo, percebi um burburinho. O convidado de honra havia chegado, acompanhado de Muratorio. Observei a lógica e o ritual. Ele conversava de um a dois minutos com cada convidado – não mais que isso – e passava para o convidado seguinte. Com alguns, era só um aperto de mão e olhe lá. Pensei comigo mesmo: não vou ter mais do que 60 segundos para vender essa ideia.
Finalmente, chegou minha vez. Muratorio piscou o olho e disse:
– É com você.
De relance, ainda tive tempo suficiente para perceber que o terno daquele bilionário era mais barato que o meu. E que talvez aquele fosse uma dos poucas peças sociais que ele mantinha no armário, pois estava ligeiramente apertado e muito surrado. Percebi também que aqueles óculos a minha frente estavam muito ensebados. “Com essa gordura”, pensei, “é possível fritar um ovo”. Percebi, então, que os olhos dele estavam focados em mim. Tomei fôlego e fui em frente. Disse que representava a Editora Abril, que publicava a maior revista do país e uma das maiores do mundo. Que estávamos criando um serviço online e negociando com a Microsoft a distribuição do Internet Explorer em nossa base de assinantes. Mas que havia um problema. E expliquei a questão da base dos Windows 3.0 e da necessidade de ter uma versão de 16 bits do Explorer 3.0 apenas para o Brasil.
Quando mencionei o nó da questão, ele pegou meu cartão de visita, e passou a anotar tudo o que eu falava no verso, freneticamente. Me perguntou quantos assinantes a Abril tinha, quanto eu iria cobrar pelo serviço online e se a empresa atuava em outros países da América Latina. Respondi às perguntas e falei mais algumas coisas relativas ao conteúdo daquilo que pretendíamos lançar. Mas ele não estava mais prestando atenção no que eu dizia. Sabe quando parece que o olho do seu interlocutor está sob um manto de névoa? Foi o que pareceu nesses últimos segundos de conversa.
Bill Gates estendeu a mão, deu nossa conversa por encerrada e foi falar com o próximo da fila.
Voltei desse jantar sem saber se tinha conseguido vender meu peixe ou não.
Duas semanas depois, recebemos um e-mail do Mauro Muratorio, dizendo que havíamos conseguido. Abaixo do e-mail deles, uma série de mensagens. A última delas, do próprio Bill Gates, reproduzindo fielmente a minha cantilena do jantar e ordenando a criação de uma versão 16 bits para o Explorer 3.0.
O que eu aprendi com esse encontro fortuito?
Bill Gates estava num jantar chatíssimo, cheio de gente que estava lá só para adulá-lo, e topou com um garotão de trinta anos com uma ideia maluca. Mesmo assim, ele viu que aquilo fazia sentido em sua batalha para quebrar a então hegemonia da Netscape no mercado de navegadores. Não se fez de rogado. Anotou o que eu dizia num cartão e deu a ordem. Compreendi que não importa o tamanho da conta bancária e nem o jeito através do qual a oportunidade surge. O que importa é o desafio de um novo mercado. Colocar o burro na sombra? Jamais.
Em tempo: no livro de Walter Isaacson sobre Steve Jobs, uma das melhores passagens é exatamente aquela em que Bill Gates se encontra com o fundador da Apple para falar sobre o lançamento do sistema operacional Windows, um ambiente gráfico como o dos Macintosh. Steve Jobs ficou possesso, já que o sistema operacional amigável e gráfico da Apple estava anos luz à frente do ambiente tela cor de fósforo do DOS, da Microsoft. Só que a Apple não tinha sido exatamente a inventora do ambiente gráfico – era uma invenção da Xerox, da qual Jobs se apropriou. Ao ser confrontado com uma acusação de cópia, Bill não perdeu a calma e disse:
– Steve, do jeito que eu vejo a coisa, o que acontece é o seguinte: eu decidi entrar numa casa e roubar uma televisão. Só que, quando estava lá dentro, percebi que você tinha entrado antes e levado a TV com você.
Talvez tenha sido uma das poucas vezes que Jobs tenha ficado sem palavras em sua vida.
Grande Bill.
Uma resposta
Puxa, Aluízio, vive cada etapa acima como usuário, muito interessante o flash-back…
Que delícia de texto.
Aproveito para agradecer pela versão 3.o 16 bits 😉 !