Desde o início do escândalo contábil envolvendo a Lojas Americanas houve uma suspeita de que os acionistas de referência da companhia – Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira – sabiam da falcatrua. Em depoimento escrito, o ex-CEO da Americanas, Miguel Gutierrez, diz que pelo menos um destes controladores (Sicupira) sabia da verdadeira situação financeira da empresa. “Questões financeiras, por exemplo, além da diretoria financeira e das áreas a ela subordinadas, eram tratadas pelo comitê financeiro, órgão de assessoramento ao conselho de administração e que contava com membros ligados aos acionistas controladores inclusive por vínculos familiares”, escreveu Gutierrez. “Tornei-me um bode expiatório a ser sacrificado em nome da proteção de figuras notórias e poderosas do capitalismo brasileiro”
Ué, mas ele não era o CEO da empresa? Como é que ele não supervisionava as finanças da companhia que comandava? O próprio Gutierrez explica: “Com a reestruturação de 2018, portanto, meu papel deixou de ser o de um CEO tradicional (que comanda diretamente os responsáveis pelas áreas gerenciais) e passou a ser o de um diretor responsável por questões mais estratégicas e de coordenação geral de negócios”, afirma. E refuta qualquer responsabilidade pela fraude nos livros contábeis: “Obviamente, não compete a um CEO de nenhuma companhia no mundo a realização de sua escrituração contábil”.
Dentro deste novo desenho organizacional, as questões financeiras da companhia passaram a ser geridas por um comitê, no qual estavam seu sucessor, Sérgio Rial, o próprio Sicupira e Paulo Lemann, filho de Jorge Paulo.
“No início de novembro de 2022, foi realizada uma reunião com o comitê financeiro, na qual se tratou amplamente sobre a situação da companhia, e na qual foi colocada de forma clara a necessidade de novos recursos. O ponto também foi objeto de diversas interações entre o sr. Paulo Lemann, com o diretor financeiro da companhia, sr. Marcelo Nunes, que o último reportava a mim. Em 15/12/2023, por exemplo, Paulo Lemann solicitou a Marcelo Nunes uma atualização sobre o consumo de caixa, recebendo como resposta que este aumentaria entre R$ 2,5 e 3,5 bilhões em dezembro […]. No mês de dezembro, Sergio Rial me informou que os controladores não gostariam de aportar recursos e tampouco aprovariam, naquele momento, uma ampliação de capital, que poderia provocar uma diluição de sua participação acionária”, disse Gutierrez.
A respeito das fraudes no balanço: “Vale observar que os membros do comitê de auditoria e do comitê financeiro, bem como os do conselho fiscal, eram indicados ou sempre validados pelo sr. Carlos Alberto Sicupira. Além disso, cabia ao conselho de administração, também, autorizar mudanças nas políticas contábeis da companhia”.
Ou seja, o ex-CEO afirma que Sicupira tinha conhecimento pleno das finanças da empresa, assim como Paulo Lemann (seria, portanto, fácil de assumir que o patriarca da família Lemann também tivesse pleno conhecimento do que estava ocorrendo na varejista).
Embora as palavras de Gutierrez sejam bombásticas, é preciso cautela neste momento. Afinal, ele está se eximindo de qualquer responsabilidade das fraudes e as colocando integralmente no colo dos controladores. São manipulações financeiras que duraram anos a fio. Por que, então, ficou na empresa durante todo esse tempo?
Amigos do ex-CEO, no entanto, alertam para o fato de que ele, por ter cidadania espanhola e estar morando em Madri, está fora do alcance das autoridades brasileiras. Dessa forma, ele estaria falando a verdade em seu depoimento.
Pode até ser. Mas ninguém que depende da boa vontade de um país europeu para se manter livre iria assumir oficialmente uma culpa que poderia significar a deportação para o Brasil. Assim, as acusações de Gutierrez devem ser levadas em consideração, mas precisam ser investigadas – e sua participação direta neste processo também precisa ser estudada de forma profunda.
A empresa bombardeou as declarações de seu ex-CEO em nota oficial: “A Americanas refuta veementemente as argumentações apresentadas pelo senhor Miguel Gutierrez à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na véspera da apresentação do relatório final. A companhia reitera que o ex-dirigente da Americanas não contestou em nenhum momento os documentos e fatos apresentados à Comissão no dia 13 de junho, que demonstram a sua participação na fraude”.
Gutierrez, de fato, não era visto internamente como uma rainha da Inglaterra. Ele mandava muito e fazia questão de demonstrar o poder que tinha. Consequentemente, essa versão de que ele era um executivo voltado apenas para assuntos estratégicos causa muita estranheza.
Esse caso, porém, está longe de ser totalmente solucionado. E, como toda boa trama, podemos esperar por algumas reviravoltas neste enredo em breve.