Líderes da maior plataforma de streaming musical demoraram a perceber que estavam diante de um problemão de governança – e que hippies ainda têm algo a dizer
Permanência e relevância são aspectos da indústria cultural que advogados e estrategistas de negócios provaram não entender ou deixaram de se preocupar na treta entre o cantor folk canadense Neil Young e Joe Rogan, dono do podcast de maior sucesso da plataforma de streaming Spotify. Rogan é um desbragado negacionista de vacinas. Após Young (76 anos), um sobrevivente da pólio, retirar seus trabalhos do ar diante da negativa da empresa em remover, punir, restringir ou alertar sobre o teor irresponsável e obscurantista de muitas das entrevistas e comentários do comediante no Joe Rogan Experience – sem contar momentos recorrentes de machismo e racismo -, veio o troco.
Quando os colegas de violão e vocal de Young, os também septuagenários David Crosby, Stephen Stills e Graham Nash, que formaram o Crosby, Stills, Nash & Young (CSN&Y), também reclamaram ao lado de Joni Mitchell, outra sobrevivente do Festival de Woodstock (15 a 18 de agosto de 1969), a imagem do Spotify começou a ser afetada de modo lento e crescente, até tudo sair do controle.
Audiência fácil
No domingo passado (30), a empresa tentou enxugar gelo ao anunciar que colocaria alertas de fake news em conteúdos anticientíficos. Uma hipocrisia, já que a plataforma tem um contrato de exclusividade com Rogan que pode atingir perto de US$ 100 milhões ao término. Foi quando a questão de governança ficou gritante. Um dos maiores acordos vigora com um sujeito que prega mentiras e mistificações que contribuem para a continuidade da pandemia em nome da audiência fácil e da lacração ao vivo.
Na quinta-feira (3), o estrago bateu onde dói mais. As ações em Nova York caíram de US$ 191,84 para US$ 159,72, um tombo de 16,7%. Ainda que tenham sofrido uma recuperação no fechamento de sexta-feira (4), aos US$ 174,43, foi o patamar mais baixo desde maio de 2020 – sem contar que já apresentavam um movimento de declínio quase contínuo desde 1º de novembro. O valor de mercado da empresa criada pelo sueco Daniel Ek despencou US$ 2,9 bilhões (cerca de R$ 15 bilhões).
Poetas junkies
Há um fato contribuinte de caráter institucional que também deu volume à treta. Pouco conhecidos no Brasil, os podcasts de Brené Brown, Unlocking Us e Dare to Lead, foram pausados na semana anterior. Palestrante do TED, pesquisadora e estudiosa das questões de vergonha, vulnerabilidade e liderança, ela é ouvida por empresários, investidores e formadores de opinião. Oradora recorrente em eventos da Disney e do Google, Brown só transmite pela plataforma e certamente é o tipo de gente que ninguém no mundo corporativo quer comprar briga. Ela pediu que a plataforma “equilibre a abordagem das complexas questões de desinformação que hoje enfrentamos, respeitando a liberdade de expressão“. Young conseguiu uma aliada poderosa antes que o Spotify percebesse seu colossal equívoco. Nem tudo é audiência na vida. Um bando de poetas junkies e pacifistas dos anos 60 que hoje vendem quase nada mostraram que ainda têm algo a dizer ao mundo.
Com a imagem danificada, o Spotify recuou. A partir deste sábado (5), começou a remover episódios do Joe Rogan Experience. Até a noite de ontem, 113 podcasts estavam fora do ar, contabilizou a plataforma JRE Missing, criada especialmente para monitorar esse movimento. Pelo Instagram, no sábado (5), Joe Rogan pediu desculpas públicas em um misto de vergonha e contraridade. Afirmou que havia “um monte de m… em antigos episódios do podcast” e que há coisas que ele gostaria de não ter dito ou dito de modo diferente. Em um desses momentos passados, o pretenso comediante citou um filme ambientado em um bairro que chamou de “planeta dos macacos”. Também admitiu que usou por mais de uma década o termo ofensivo “nigger” para denominar afroamericanos. Ainda não há relato se as suas entrevistas e comentários antivacina estão nessa leva de cancelamentos.
Novo público
A declaração foi um ato desesperado. E se além dos velhos hippies, entrassem na parada mulheres superpoderosas do showbizz, como Madonna, Lady Gaga e Beyoncé? Jay Z, parceiro criativo e marido de Queen B, foi dono da plataforma de streaming Tidal, vendida por quase US$ 300 milhões. Nessa história, só ganharam os concorrentes, como Deezer, Amazon Music e Apple Music.
Rogan vai continuar ganhando muito dinheiro. Já Neil Young lutou o bom combate por uma causa que achou digna e que teria lhe custado 60% dos rendimentos musicais da internet – ele tinha 6 milhões de ouvintes mensais no Spotify. Algo que deve recuperar em breve, pois foi descoberto por um público bem mais jovem sem ao menos ter saído de casa. Nada mau para uma carreira de mais de 50 anos e 41 álbuns de estúdio. Algumas ligações para lojas da Galeria do Rock sugerem que até no Brasil há uma moçada atrás de seus trabalhos em vinil e CD. Se para mídias físicas estaria assim, é de se supor que nos outros canais as coisas para o cantor folk também estejam melhorando.