Com potencial para substituir plásticos, couro e até tijolos, micélio pode virar uma alternativa econômica e ecológica sustentável
Não é preciso imaginar, pois existe um produto que agora pode transformar resíduos em alimentos nutritivos, substituir couro e plástico e até fornecer matéria-prima para residências mais sustentáveis. O que faltava era a humanidade descobrir. Se trata do micélio, que forma as redes de filamentos vegetativos que carregam nutrientes para os fungos, organismos que formam um reino à parte de animais, vegetais e bactérias. O aproveitamento destas estruturas cria condições de mudar indústrias inteiras ao longo do século XXI. No Brasil há empresas que se valem de patentes internacionais para desenvolver produtos que devem escalar. Se e quando ocorrer, podem dar início ao equivalente ecologicamente correto do plástico.
Revolução à mesa
A busca por alternativas à carne (no destaque acima) impulsionou o desenvolvimento de proteínas baseadas em micélio. Empresas como a Typcal, pioneira na América Latina, estão produzindo alimentos nutritivos e saborosos, com um impacto ambiental significativamente menor. Algo mais que necessário, ainda que haja quem torça o nariz. “O micélio permite uma produção sustentável e escalável, sem as exigências de terra e recursos naturais do sistema agropecuário”, destaca Eduardo Sydney, diretor de tecnologia (CTO) da Typcal. Para quem não lembra, a humanidade consome fungos ao ingerir cogumelos (champignon, na nomenclatura gourmetizada) e queijos. Nos Estados Unidos, a MyForest Foods desenvolve alternativas ao bacon. Se cair no gosto do público, vai explodir em vendas.

Moda sustentável e biodegradável
A indústria da moda também encontrou uso para micélio. A paranaense Muush desenvolveu um tecido ecologicamente alternativo ao couro. “Nosso biotecido é uma solução para substituir materiais sintéticos, reduzindo a dependência de recursos intensivos em água e energia na moda”, afirma o CEO Antonio Carlos de Francisco.
As frutificações por onde passam os nutrientes dos fungos podem ser processadas com baixo custo. Para alimentar um cogumelo – um fungo -, são misturados pedaços de serragem e subprodutos agrícolas que fazem o emaranhado crescer. Depois disso, formam-se folhas que serão prensadas para em poucas semanas adquirirem a textura do couro. O desafio é produzir com rapidez.
O impacto ambiental desse processo é perto do neutro, pois onde eram gastos 500 litros de água na produção do couro convencional são utilizados só 40 litros. Além disso, é um produto reciclado e biodegradável, o que faz dele eco friendly.
Algumas marcas poderosas, como Adidas e Stella McCartney, investem na produção da Bolt Threads, fornecedora de insumos para moda sustentável. Lançado em 2022, o couro de cogumelo Mylo é criado em até 10 dias. Algo espantoso, se comparado com o couro animal, que entre o nascimento e o processamento industrial após abate pode demorar de 18 meses a 5 anos. Para o tingimento, enquanto o couro animal recebe produtos tóxicos, o couro de micélio aceita itens naturais e é processado por empresas com comprometimento ambiental e rastreio mais fácil. O primeiro produto da Bolt foi uma seda a partir de teia de aranha, em 2012. Depois, em 2017, veio o primeiro produto comercial, a Microsilk, fibra microssintética de fungos que lembra a seda.
Se engana quem acha que esse tecido só chega aos mercados em marcas de luxo. Na Indonésia existe uma cultura secular de cultivo de fungos. Uma das famílias que fez disso um negócio é a de Adi Reza Nugroho, diretor da Mycotech. Com ajuda de amigos e seus pais fazendeiros, desde 2012 opera uma startup de pesquisa e produção baseada em cogumelos.

Com o tempo, a Mycotech direcionou esforços para o micélio. Hoje produzem tecidos para produtores locais de roupas. “O cogumelo é um superingrediente para se tornar um produto de larga escala no futuro pois imita perfeitamente o couro animal, sem qualquer adesão de plástico, PVC ou aditivos químicos”, diz Nugroho. Mas o assunto não está definido, já que há concorrência de outras produtos, como couro de cortiça, de cacto e até de fibra de maçã. Nenhum parece tão escalável e sustentável. A dúvida que paira é sobre a durabilidade. De saída, os biotecidos podem se prestar à fast fashion assim que saírem do nicho descolado e conceitual. Felizmente os testes mostram que nem de longe se trataria (alerta de quase spoiler) de uma aplicação na vida real do enredo do longa de ficção científica “O Homem do Terno Branco” (1951).
Construção e automóveis
O micélio também está chegando à construção civil a seco. O mushpack desenvolvido pela Mush é um agregado biodegradável que já atraiu a atenção da Ikea e da Dell. Além de servir como matéria-prima para embalagens. “O mushpack é 100% biodegradável, neutro em carbono e resistente ao fogo”, afirma Ubiratan Sá, também CEO da Muush. As linhas de utilização incluem blocos de cultivo em moldes, estruturas monolíticas e peças biossoldadas.
A indústria automotiva também está explorando esse potencial. A leveza e a resistência fazem dos derivados substitutos ideais para o lugar de plásticos e espumas em componentes como painéis e forros de portas. Porém, depõem contra seu uso ampliado a necessidade de acertos, já que biológicos podem enfrentar degradação precoce se expostos à água ou permaneçam em ambiente confinados. Nada que não possa ser resolvido com mais pesquisa e inventividade.
Inovação e design
O micélio não se limita às já citadas indústrias alimentícia, têxtil coureira e de construção – como se fosse pouco. O estúdio de design chinês Nongzao desenvolve objetos do dia a dia com seu projeto Consumer. A partir do cultivo sustentado com resíduos agrícolas, como borras de café e cascas de arroz, a startup extrai lâminas para móveis e objetos de decoração que conseguem ser industriais e exclusivos simultaneamente.
Ao utilizar moldes de objetos plásticos comuns, como cadeiras e luminárias, preenchendo-os com o fibra de micélio, a Nongzao cria peças que fogem do lugar comum industrial. Cada peça é única, com padrões orgânicos e texturas que refletem o crescimento natural do “enervamento” dos fungos. Além de esteticamente atraentes, são ecologicamente corretos e, após o descarte, podem ser decompostos naturalmente no solo, reduzindo o problema do lixo plástico e o desperdício de alimentos ao mesmo tempo.
Nos EUA, a Ecovative abriu sua patente europeia do MycoComposite para tentar tomar espaço do plástico no mercado de embalagens. A empresa tenta fazer sua linha Forager uma das principais em produtos têxteis e espuma sustentáveis. Novas possibilidades devem aparecer em breve e mostram que há como reduzir impactos em perder produtividade.
Confira:
Publicado originalmente em 31/10/24