Autora da graphic novel “Persépolis”, a iraniana Marjane Satrapi retorna com uma coletânea poderosa contra o machismo e a repressão religiosa
Em meio à recente escalada de tensões entre o Irã e o Ocidente, uma recente novela gráfica oferece uma perspectiva crucial da realidade feminina vivida na teocracia dos aiatolás. “Mulher, Vida, Liberdade” (Zan, Zendegi, Azavi, em persa), foi idealizado por Marjane Satrapi, a cultuada autora de “Persépolis” (2000), que reuniu três especialistas e 17 ilustradores para criar um retrato comovente da resistência em curso contra um regime estagnado e repressivo.
Inspirado pelo movimento “Mulher, Vida, Liberdade”, que eclodiu em 2022 após a morte de Mahsa Amini nas mãos da polícia da moral por usar indevidamente o hijab (tipo de véu tradicional muçulmano que cobre cabelo, orelhas e pescoço das mulheres), o livro apresenta 25 capítulos curtos sobre a vida de quem ousa questionar ou desafiar as rígidas normas do islã de corrente xiita.
A exemplo de outras novelas gráficas de narrativa jornalística, como “Gorazde” e “Palestina“, de Joe Sacco, “Fax de Sarajevo“, de Joe Kubert, e “O último dia no Vietnã“, de Will Eisner, desta vez Satrapi deixa a narrativa de juventude e família de “Persépolis” para dar voz aos familiares dos mortos e desaparecidos, aos casos de tortura, as bombas de gás lançadas em escolas femininas, a censura e a infiltração nos protestos para instilar paranoia e desconfiança.
A obra tem duas intenções. “Explicar o que se passa no Irã” e “lançar um sinal aos iranianos para lembrá-los que não estão sós”, conta Satrapi, de 54 anos. Desde os 25 ela optou pelo autoexílio na Europa, onde virou romancista gráfica, cartunista, ilustradora, diretora de cinema e autora de livros infantis. Além de ativista política.
Mulher, Vida, Liberdade
“Quando eu era jovem, tínhamos esperança de um mundo melhor e um Irã melhor, mas a situação não mudou”, admitiu Satrapi em entrevista recente. Ao mesmo tempo, ela vê esperança na nova geração que protesta nas ruas: “Essas manifestações são diferentes de tudo no Irã. Desta vez, homens e mulheres lutam juntos por democracia, não acreditando na reforma do sistema ditatorial, mas sim em uma mudança de regime”, disse. Ela destaca que a maioria dos jovens hoje tem acesso à internet e à informação global, o que os torna mais preparados para lutar. Sem contar que a imensa maioria da população nasceu após a Revolução Islâmica de 1979, desprezando as justificativas políticas para a manutenção da supervisão religiosa na vida civil.
“Mulher, Vida, Liberdade” relata a origem do slogan e da canção “Barâyeh”, o hino da revolta, homenageando ativistas antigos e as vítimas da repressão. Parte do livro é dedicada a Narges Mohammadi, laureada com o Prêmio Nobel da Paz. Seu livro “Tortura Branca” expôs a opressão das prisões arbitrárias de mulheres, vítimas de abuso sexual e confinamento continuado em solitárias. Quando o livro foi lançado Mohammadi estava na prisão por liderar protestos contra a pena de morte no Irã.
“Não se trata de uma erupção inesperada, mas de uma convulsão assinalável na longa história das mulheres a afirmarem os seus direitos, e é certo que prosseguirá”, afirma Marjane Satrapi na apresentação de “Mulher, Vida, Liberdade”. Ela acredita que, apesar da origem na luta das mulheres, o movimento atual é muito vasto. Por isso teria muito mais chances de sair vencedor.
Histórico revolucionário
Com 54 anos, Marjane Satrapi cresceu em uma família ocidentalizada de Teerã – seu pai era engenheiro e a sua mãe, estilista. Após a revolução iraniana de 1979, a vida da família ficou limitada. Em 1984, seus pais decidiram mandá-la estudar na Áustria.
Após idas e vindas, em 1994 ela recomeçou a vida sozinha na França. Satrapi tornou-se conhecida al lançar “Persépolis” (2000) e “Persépolis 2” (2001), que foram traduzidos para inglês em um único volume, em 2003. Biografia gráfica, o trabalho recorda sua infância e juventude no Irã e na Europa. O livro foi adaptado para cinema como animação pela própria Satrapi, em 2007, quando acabou indicado ao Oscar de melhor animação.
Depois disso, continuou a publicar livros, incluindo a continuação de “Persépolis”, “Frango com Ameixas” (2019) e “Bordados” (2020). Em 2019, dirigiu o longa metragem “Radioactive“, sobre a vida da cientista Marie Curie, interpretada Rosamund Pike.