Uma análise sobre a decisão do ministro do STF levanta dúvidas alarmantes sobre a metodologia interpretativa e o próprio papel do texto constitucional
No Recurso Extraordinário com Agravo 1.513.428, o Supremo Tribunal Federal abordou uma questão que deveria ser intocável em qualquer democracia genuína: a liberdade de expressão em sua forma plena. A decisão, conduzida pelo Ministro Flávio Dino, vai além de uma simples interpretação, ao ordenar a remoção de obras jurídicas sob a justificativa de conterem “discurso de ódio” contra grupos minoritários. Essa restrição, à luz de um olhar textualista, levanta dúvidas alarmantes sobre a metodologia interpretativa e sobre o próprio papel do texto constitucional. Ao criar categorias de expressão condenáveis sem previsão legal explícita, o STF não apenas desvirtua o significado da liberdade garantida pela Constituição, mas abre perigosamente as portas para a censura e para o silenciamento arbitrário de vozes que ousam desafiar o consenso.
O textualismo exige que a interpretação legal e constitucional se atenha ao texto e ao significado das palavras no momento em que foram redigidas. No contexto brasileiro, a Constituição de 1988 garante a liberdade de expressão, vedando a censura (art. 220) e garantindo o livre acesso ao conhecimento e à informação. Esse direito, segundo a perspectiva textualista, é abrangente e restringível apenas nas situações previstas expressamente pelo texto constitucional. A interpretação ampliada de princípios constitucionais para restringir a liberdade de expressão encontra-se, portanto, em conflito com o textualismo, que rejeita interpretações alargadas não fundamentadas no texto.
O Supremo Tribunal Federal argumenta que, embora a liberdade de expressão seja garantida pela Constituição, essa liberdade deve ser balanceada com outros direitos, como a dignidade humana e a igualdade. A decisão, ao priorizar tais princípios, subverte o entendimento textualista, no qual a liberdade de expressão goza de prioridade e restrições somente nos casos expressos, como na proibição da incitação ao racismo, que possui previsão clara de punição (art. 5º, XLII). Essa decisão do STF não está ancorada em uma proibição explícita de conteúdo homofóbico ou misógino na Constituição, mas, em vez disso, em uma leitura do tribunal que qualifica esses conteúdos como incompatíveis com o princípio da dignidade da pessoa humana. Sob a perspectiva textualista, em ausência de uma proibição expressa, o tribunal está, na prática, legislando ao invés de interpretando. O risco é óbvio: uma vez permitida a leitura expansiva de princípios como a “dignidade humana”, qualquer ideia considerada inconveniente pode se tornar alvo de restrições arbitrárias.
Ao qualificar as obras analisadas como “discurso de ódio”, a decisão do STF se baseia em um conceito ambíguo, que não possui uma definição precisa na Constituição brasileira. Esse é um ponto central da crítica textualista, pois o conceito de “discurso de ódio” emerge como uma construção teórica, e não textual. A Constituição, ao garantir a liberdade de expressão e vedar a censura, claramente estabelece um padrão de liberdade robusto. O textualismo, assim, se opõe a adotar interpretações abstratas ou moralmente carregadas que não estejam presentes na linguagem legal. Nesse sentido, a tarefa do juiz é interpretar o texto e não criar novos significados ou restrições implícitas. A aplicação de uma categoria de “discurso de ódio” sem que essa tenha respaldo literal na Constituição implica atribuir aos juízes o poder de decidir, caso a caso, quais ideias são aceitáveis e quais não são – uma prática comumente associada à censura e à supressão de liberdades em regimes autoritários.
Outro aspecto da decisão que merece crítica sob o prisma textualista é a tentativa de justificar a restrição de liberdade de expressão com base na proteção a direitos coletivos. A decisão do STF posiciona a dignidade de grupos minoritários, como mulheres e LGBTQIA+, como valores que poderiam limitar o direito individual à livre expressão. Entretanto, a Constituição Brasileira não prevê a prevalência de direitos coletivos sobre direitos individuais expressamente definidos, como a liberdade de expressão. Os direitos individuais, quando claramente garantidos pelo texto constitucional, não podem ser sacrificados por interpretações coletivistas ou “metas de bem-estar social” que não estejam expressamente delineadas. No caso da decisão analisada, o direito individual à livre expressão, amplamente protegido pela Constituição, é subjugado a uma interpretação subjetiva de dignidade coletiva. O textualismo rejeitaria tal abordagem, por considerar que essa expansão interpretativa desvia do papel protetor do texto legal e permite que juízes imponham suas próprias concepções de “bem social” acima do que a Constituição expressamente previu.
A Constituição de 1988 foi redigida em um contexto de superação de um regime autoritário, quando o país buscava assegurar liberdades individuais. Ao negar a proteção constitucional à liberdade de expressão para as obras questionadas, a decisão do STF ignora o propósito histórico que fundamenta o texto constitucional. O contexto histórico e o propósito original dos textos devem ser levados em conta para assegurar uma interpretação fiel às intenções do legislador. A liberdade de expressão, conforme delineada pela Constituição de 1988, emerge como uma reação direta ao autoritarismo e à censura, e qualquer restrição a essa liberdade deveria, portanto, ser tratada com cautela extrema. Se o contexto de redemocratização assegura o direito de ideias controversas serem expressas, as tentativas de restringir conteúdos por seu “potencial ofensivo” revelam uma contradição com o espírito da Constituição. Ao desviar do texto e da intenção original, abre-se caminho para o arbítrio judicial, comprometendo os direitos que o texto busca preservar.
Na visão textualista, o Judiciário deve evitar interpretações criativas que ampliem ou restrinjam direitos de maneira não prevista no texto constitucional. A decisão do STF, ao definir que certas ideias ferem a dignidade humana, adota uma postura intervencionista e assume um papel que cabe ao legislador, caso este deseje estabelecer novas limitações à liberdade de expressão. Ao criar uma restrição que não se encontra no texto constitucional, a Corte se afasta de seu papel interpretativo e adentra no campo legislativo, substituindo a vontade democrática expressa no texto pela interpretação pessoal de seus ministros. Essa atuação, data maxima venia, extrapola a função do Judiciário, que deveria respeitar os limites do texto e as prerrogativas do Legislativo. O textualismo exige que o papel do juiz seja o de interpretar, e não de legislar, protegendo os direitos constitucionais sem impor restrições a partir de valores pessoais ou interpretações elásticas de princípios. Ao permitir a censura de obras com base em princípios abstratos, a decisão erra, pois dá ao Judiciário um poder excessivo e suscetível a abusos, indo além do que foi autorizado pelo constituinte.
Eu não concordo com as falas desrespeitosas nas obras tratadas pela decisão. No entanto, censurá-las é bastante problemático. Restringir a expressão sem base legal sólida cria um perigoso precedente e mina um princípio essencial do Estado Democrático de Direito.
Pois bem. A decisão do STF no ARE 1.513.428 marca um perigoso afastamento dos princípios do textualismo e da interpretação fiel ao texto constitucional. Ao adotar uma abordagem que expande o conceito de dignidade humana para limitar a liberdade de expressão, a Corte ignora o texto e o propósito original da Constituição de 1988, introduzindo uma censura incompatível com o Estado Democrático de Direito. A interpretação textualista, ao exigir fidelidade ao texto e aos significados objetivamente contidos na lei, denuncia a fragilidade dessa decisão, que impõe restrições arbitrárias e potencialmente perigosas para a democracia. A liberdade de expressão, consagrada na Constituição como um direito robusto e essencial, não deve ser restringida com base em interpretações subjetivas ou valores de conveniência. Ao contrário, ela deve ser preservada e defendida, especialmente em contextos de discursos incômodos ou controversos. A decisão do STF, ao preferir uma leitura moralmente carregada ao invés de uma interpretação textualista, sacrifica a clareza e segurança jurídica, abrindo precedentes para futuras restrições de ideias e pensamentos.
Um mundo menos livre e mais cinza
Feitas as considerações técnicas, imaginemos, então, um tribunal em uma terra fictícia, onde palavras possuem tanta vida quanto as figuras que as pronunciam. Nesse reino das letras e dos sentidos, tudo o que se diz ou escreve ganha corpo e alma, e as ideias disputam um espaço frágil e tênue no coração dos leitores. Ali, convivem um juiz solene e um autor, um tanto inconformado, que viu sua obra ser condenada a desaparecer na fogueira dos conceitos abstratos.
O juiz, encarnando o dever de proteger o bem-estar coletivo, olha para o autor com a paciência de quem muito sabe sobre as delicadas regras que organizam aquela terra de papel e tinta. Ele começa seu discurso pontuando os perigos dos textos do autor, palavras que, segundo ele, florescem de sementes que ferem a honra, a dignidade e a paz dos habitantes. Ele toma fôlego, invocando grandes conceitos — dignidade, igualdade, harmonia. As palavras dançam no ar, etéreas, mas também armadas, afiadas.
O autor, homem de vocabulário lúgubre e refinado, respira fundo. É um ser obsoleto, talvez, de outras eras, alguém que ainda acredita que o papel aceita tudo, que as ideias podem incomodar, mas não precisam ser domadas como animais selvagens. Seu semblante é triste, pois vê que até mesmo na terra das letras, onde outrora floresciam todas as cores de pensamento, começa a surgir uma monocromia asfixiante. “Senhor juiz,” começa o autor, com uma voz que procura uma nesga de razão, “essas palavras que tão gentilmente condena, não são minhas, mas das páginas da vida. São sementes plantadas pela experiência, são espinhos da alma humana, são as sombras que completam o quadro.”
O juiz balança a cabeça, impassível, como que imune aos encantos da retórica. Ele declara sua sentença: as obras, julgadas ofensivas e perigosas, devem desaparecer para sempre. O autor, ainda surpreso, observa o manuscrito sendo recolhido e levado a um destino incerto, como se fosse um antigo companheiro de aventuras traído pela mudança dos tempos.
E, ao se afastar do tribunal, o autor se pergunta se não seria este o início de uma era de ideias frágeis, como flores que não resistem à menor intempérie. Ele pressente que, naquele tribunal, não foi apenas seu livro a ser condenado, mas também a liberdade que, como pássaro incansável, sempre sobrevoara os campos da imaginação humana. E assim, talvez com uma ponta de melancolia, o autor, ecoando um pouco de Machado, sussurra para si mesmo: “Os tempos mudaram, e com eles, as vozes. Restará ainda alguma página em branco para quem pensa diferente?”
Ao longe, o fogo crepita, e o céu, agora sem o colorido de outrora, parece menos imenso e menos convidativo. Não se protege ninguém apagando o passado, pois as pessoas precisam da consciência do passado para agir de forma adequada no presente e no futuro.
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Por Leonardo Corrêa
Publicado originalmente em: https://encurtador.com.br/IMiN5