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Barulheira e corporativismo patológico

Do maluco que ameaçou quem criticou militares corruptos ao vice Mourão, que minimizou o caso Viagra, só interessa proteger a turma

É estranho admitir, mas já fui ameaçado por exercer o jornalismo em pleno Brasil democrático. E isso é menos incomum do que se deveria supor. O caso concreto, interessante e absurdo me faz rir com algum amargor. Nada que se compare ao que foi imposto a milhares de brasileiros durante a Ditadura Militar, o Estado Novo e o caudilhismo da República Velha, quando parentes próximos e distantes sentiram as consequências por pensar diferente. Em julho de 2018, às vésperas do primeiro turno das eleições, escrevi uma reportagem para uma grande revista semanal sob o título “Larápios de farda”. No texto, apontei casos de corrupção nas forças armadas ao longo de décadas, começando pela fragatas adquiridas do Reino Unido, no final dos anos 1970. Era um daqueles trabalhos de resgate. A intenção era derrubar com fatos o mito que os militares seriam a salvação nacional. Algo ressuscitado de tempos em tempos desde a Proclamação da República, em 1888.

Como em qualquer grupo social, no Exército, na Marinha e na Aeronáutica há uma imensa maioria de profissionais corretos, cidadãos honestos, sem contar que poucos têm entre suas atribuições a gestão de recursos. Mas quem está mal-intencionado sempre se vira. Enumerei casos de fuzileiros navais detidos com pasta base de cocaína, um sargento do Exército foi preso em uma rodovia com fuzis AR-15, AK-47 e R$ 3 milhões em drogas. Um dos patronos do programa nuclear brasileiro, o vice-almirante da reserva Othon Pinheiro da Silva, foi condenado na Lava-Jato por receber propinas nas obras de Angra 3. Aos 83 anos, ele briga na Justiça para limpar seu nome – vi o almirante uma vez na casa da família de amigos, no Rio. Havia também denúncias de desvios em obras de hospitais e estradas. Em 2018, o Ministério Público Militar (MPM) investigava R$ 200 milhões em falcatruas. Dessas, 59 eram de casos acima de R$ 100 mil. Os envolvidos eram oficiais da ativa e da reserva, assim como agora temos o estranho caso do medicamento superfaturado para disfunção erétil. E nem vamos falar do vexame internacional dos 37 quilos de cocaína encontrados por autoridades espanholas em Sevilha, em 25 de junho de 2019, quando da escala do avião que levava a comitiva do presidente Jair Bolsonaro para uma conferência do G20 no Japão. A droga foi avaliada em R$ 6,65 milhões. Em fevereiro de 2020, o sargento da FAB Manoel Silva Rodrigues recebeu uma pena de seis anos de prisão e multa de € 2 milhões por tráfico internacional de drogas. No Brasil, em 15 de fevereiro deste ano, o Superior Tribunal Militar (STM) o condenou a 14 anos e 6 meses de reclusão – descontáveis do que for cumprido na Espanha.

Mulher sensata

Exemplos ruins não faltam. Nem por isso as forças armadas podem ser vistas como um antro de corruptos. A Justiça funcionou e todos tiveram chance de defesa. Só que os desdobramentos daquela reportagem reforçaram a constatação de que uma parte significativa dos brasileiros percebe a realidade a partir de uma paranoia gestada no fígado. Nas redes sociais, um idiota linkou meu nome e disse que quando os militares chegassem ao poder “seria a minha vez” e que “minha hora chegaria” em breve. Não sabia da existência de uma dissidência fardada tentando chegar ao poder pela força. Parece que é boato. Por isso, fui atrás do perpetrador do bullying político que me enchia o saco.

Criei perfis falsos e fui fuçando. Achei o endereço e o telefone. O mané vivia em uma cidadezinha no norte de Goiás, onde sequer existem quartéis. Achei que fosse da reserva ou até um policial. Meu editor executivo dizia que eu era louco. Liguei. Atendeu uma senhora. Perguntei pelo fulano e contei quem eu era, da revista tal, o que estava ocorrendo. O sujeito era um mecânico que dava meio expediente na garagem da prefeitura (não era concursado), onde prestava manutenção em caminhões e tratores. Expliquei à senhora que era alvo de ameaças dele. Mandei por aplicativo as imagens. Disse que o processaria sem dó, não importasse o quanto me custaria. A mulher pediu clemência. Explicou que antes o marido não dava bola para política, mas estava envenenado. “Ele só fala daquele homem, não sai do computador. Só fala em prender, bater, em acabar com tudo. Até dos professores ele fala mal. Tenho um sobrinho que faz faculdade em Goiânia”. A seguir, disse que acabaria com a brincadeira assim que ele chegasse do trabalho, senão iria embora de casa – ou o botaria para fora. Para ela, xingar quem trabalha “não era coisa de Deus”. Todos os posts foram apagados naquela noite e as ameaças sumiram para nunca mais. Espero que estejam juntos. O cara não pode perder essa mulher.

Lembrei do recorrente “Angry White Men: American Masculinity at the End of an Era”, de Michael Kimmel, minha Bíblia para essas coisas. Esse livro já revisado sobre o comportamento agressivo – para dizer o mínimo – de grandes contingentes de homens brancos pouco letrados das classes média baixa e baixas dos Estados Unidos encontra algum paralelo no Brasil, onde parte do eleitorado tem sua indignação direcionada contra qualquer crítica pontual a tudo que nutram a mínima simpatia. É o caso dos militares e de seu fã-clube.

Testemunhas assassinadas

Em 2009, para outro semanário, cobri uma “revolta” na cúpula da PM capixaba contra o então secretário de Segurança, Rodney Miranda, delegado aposentado da Polícia Federal. Anos antes, ele participou da apreensão de R$ 1,3 milhão não declarados na sede de uma empresa da então governadora do Maranhão, Roseana Sarney. Também investigou Hildebrando Pascoal, o ex-deputado federal acriano e ex-coronel da PM que fatiava desafetos com motosserras. Com doses de liberdade ficcional, Miranda escreveu o livro “Espírito Santo”, sobre o assassinato do juiz Alexandre Martins de Castro Filho, baleado por pistoleiros em Vila Velha em 2003. O juiz participava de uma força-tarefa contra o crime organizado e esquadrões da morte. Houve gente sentenciada descrita com o nome real, os inocentados ou que haviam escapado até então de uma condenação, receberam nomes fictícios.

Na entrevista com o chefe da inteligência da PM capixaba, fiquei cercado por oficiais o tempo todo e havia um gravador colado com esparadrapo embaixo de uma mesa. “Vê lá o que você vai escrever” foi um mantra. Nenhum dos presentes era o ex-coronel Walter Gomes Ferreira, então considerado um dos mandantes do assassinato. Sem contar que testemunhas tinham o triste hábito de morrer baleadas antes de depor diante do júri. Convidei o entrevistado a colocar seu gravador do ladinho do meu. Deu certo. Perguntei também se todos ali eram citados no livro e quem eles eram. Nunca vi tanta gente sair de uma sala com tamanha rapidez, organização e silêncio. A entrevista foi tranquila a partir daí. O episódio todo foi classificado pelo ex-secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, como um caso de “corporativismo patológico”. “Nem quando ‘Tropa de elite’ mostrou uma polícia assassina e corrupta no Rio de Janeiro houve tanta resistência”, afirmou em 2009. Soares sabia o que estava falando. Ele foi um dos autores de “Tropa” e “Espírito Santo”. O primeiro provocou o endeusamento do Bope por parte de quem não leu livro e pouco entendeu o filme.

Essa incapacidade crítica é um problema civilizatório. O brasileiro precisa entender que integrar alguma categoria, principalmente de servidores públicos, não dá a ninguém a chancela de estar correto acima de tudo e todos. Os problemas precisam ser atacados sem acobertamentos. Essa lição que insistimos em não aprender continuará a fazer estragos. Na quinta-feira (14), o bonachão vice-presidente Hamilton Mourão perdeu a chance de fazer bom papel no episódio do genérico para disfunção erétil. “O que são 35 mil comprimidos de Viagra para 110 mil velhinhos. Não é nada”. Mesmo sem levantar a voz, o general da reserva eleito para ser o regra três do Executivo ignorou propositalmente o principal: o aparente sobrepreço em uma compra pública praticada por alguém fardado.

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