O ex-presidente Jair Bolsonaro gosta de dizer que, durante seu mandato, sempre respeitou as quatro linhas da Constituição. Mas uma reportagem da revista Veja, divulgada ontem, mostra que talvez as coisas não sejam exatamente como Bolsonaro afirma. Mensagens do senador Marcos do Val obtidas pela publicação mostram que houve uma trama contra o ministro Alexandre de Moraes — e, caso a arapuca desse certo, haveria a tentativa de um golpe de estado para anular as eleições de outubro e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. O complô, assim, seria acionar o senador para que ele gravasse uma conversa com Moraes e obtivesse alguma declaração a ser utilizada como pretexto de cancelar o pleito – e manter Bolsonaro no poder. Marcos do Val, no entanto, não aceitou a missão e a delatou ao ministro (ontem, renunciou ao mandato e depois renunciou à renúncia).
Há ainda muitas dúvidas sobre o caso. Segundo uma versão do próprio Val, em uma conversa que contou com o agora ex-deputado Daniel Silveira e o então presidente, Bolsonaro teria dito ao senador para pensar sobre o que foi discutido e depois responder à proposta. Em entrevista à GloboNews, porém, o senador disse que o ex-presidente “ouviu tudo e ficou calado”. Nota do colunista Lauro Jardim, de O Globo, cuja fonte é um ex-assessor do ex-mandatário, reforça a segunda alternativa. De qualquer forma, houve uma conversa sobre subverter a ordem democrática em frente ao presidente da República. Mesmo que Bolsonaro tivesse se mantido em silêncio o tempo todo, a sua presença nesse colóquio já seria, por si só, temerária.
De qualquer forma, do ponto de vista legal, houve uma conspiração engendrada por Daniel Silveira – algo grave, que afronta claramente a democracia e tem motivação golpista.
De certa forma, foi ingenuidade achar que um senador da República pudesse cair nessa esparrela – ou que Moraes fosse admitir algum tipo de favorecimento a Lula. Aliás, sobre essa possibilidade: mesmo que isso tivesse ocorrido, o ex-presidente acabou perdendo a eleição para ele mesmo, diante dos erros que cometeu. Se indispôs constantemente contra os eleitores de centro e o público feminino. Para finalizar, teve de lidar com episódios envolvendo a deputada Carla Zambelli e o ex-deputado Roberto Jefferson, seus aliados, na véspera das eleições.
Bolsonaro é um fã declarado do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. E, ao longo de seu mandato, colecionou semelhanças com o amigo americano. Ambos deram uma série de declarações inoportunas durante o período de pandemia. Os dois igualmente afirmaram, antes das eleições que haveria fraude nas urnas (sem apresentar uma só prova). Pessoas com o temperamento conflituoso de Trump tendem a ser maus perdedores. Esse episódio deixa uma questão no ar: será que também foi o caso de Bolsonaro?
Há um agravante nessa denúncia: a informação de que os equipamentos de grampo seriam fornecidos pelo Gabinete de Segurança Institucional, através da Agência Brasileira de Inteligência – e que há dois membros desses órgãos que entrariam no esquema e ainda permanecem anônimos. Se estes indivíduos forem militares, teremos ainda um fator que complica ainda mais a situação.
Como se trata de uma tentativa grave de se solapar a democracia, o caso precisa ser investigado a fundo e os responsáveis levados à lei. O que devemos fazer daqui para frente? Seguir o que foi dito pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, em seu discurso que celebrava a vitória na eleição de quarta-feira: “Neste Brasil, não há mais espaço para aqueles que atentam contra os poderes que simbolizam nossa democracia. Esta Casa não acolherá, defenderá ou referendará nenhum ato, discurso ou manifestação que atente contra a democracia”.
Vamos ver, agora, se essas palavras foram ditas para valer.