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Damares enrolada na própria língua

Em uma pregação, pastora/senadora denunciou um esquema internacional de tráfico e estupro de crianças que só existiria em sua cabeça

O assunto seria melhor tratado por um psicólogo de linha freudiana, mas nem por isso deve deixar de ser a Fake News da Semana, dada sua gravidade. A afirmação da senadora eleita e ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (Republicanos-DF), que crianças de famílias miseráveis da Ilha de Marajó, no Pará, seriam traficadas para o Suriname a fim de servirem como escravas sexuais de pedófilos se mostra um delírio. Em nenhum momento ela apresentou provas perto de serem convincentes ou registros públicos que corroborem sua narrativa.

A história foi contada durante uma pregação em um culto da Assembleia de Deus, em Goiânia (GO), no sábado (8). Damares estava na companhia da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, em uma celebração que defendia a reeleição do presidente. A ex-ministra e pastora falou por 12 minutos e 14 segundos (vídeo abaixo). Ela começa aos 56m12s, citando uma “guerra espiritual” e, em 1h02m, chega a Marajó: “Nós temos imagens de crianças nossas, brasileiras, com 4 anos, 3 anos, que quando cruzam as fronteiras, sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem no sexo oral”. Segue, em 1h03m3s: “Descobrimos que essas crianças comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”. Depois, em 1h3m49s, conta que “abriu as gavetas do ministério” para descobrir que “nos últimos sete anos explodiu no Brasil os casos de estupro de recém-nascidos”. Ela saiu aplaudida e o conteúdo ganhou as redes sociais.

Questionada, Damares alegou que tomou conhecimento dos crimes por meio de relatórios do Ministério Público e de três comissões parlamentares de inquérito (CPI) sobre o tema. Também disse que esses casos são relatados por moradores de Marajó, ilha que só faz fronteira com Guiana e Suriname na geografia obtusa da pastora.

De ouvir falar

Na terça-feira (11), o Ministério Público Federal (MPF) requisitou todos os casos de denúncias recebidas pelo Ministério dos Direitos Humanos, em trâmite ou não, desde 2016. No dia seguinte, o Ministério Público do Pará (MP-PA), deu um prazo de cinco dias para Damares enviar todas as provas dos crimes contra menores citados no Marajó. Daí a coisa complicou. A análise das 2.093 páginas dos relatórios de três CPIs fornecidos pela assessoria da senadora eleita não citam tais fatos. Tampouco há imagens. Na quinta-feira (13), o MPF emitiu uma nota afirmando que não há nenhuma denúncia ou investigação que envolva os detalhes apresentados pela senadora eleita ao longo dos últimos 30 anos de registros. Os promotores federais também afirmaram que foram abertos um inquérito policial e três civis, entre 2006 e 2015, sobre supostos casos de tráfego internacional de crianças em Marajó. Só que em nenhum havia tamanho detalhamento nas torturas, por isso aguardam mais informações do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A Polícia Civil pediu acesso ao material. O Ministério Público Federal (MPF) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) também querem saber de onde vieram essas histórias.

Em entrevista à Rádio Bandeirantes, na mesma quinta ela tentou explicar novamente os detalhes daquilo que não consegue provar: “Essa coisa de que as crianças, quando saem, saem dopadas e os seus dentinhos são arrancados onde elas chegam a gente ouve nas ruas, na fronteira. Na CPI, lá atrás, já se falava de que forma essas crianças são traficadas. Elas ficam dopadas por 24 horas. Elas são levadas em caixas, sacos. Todo mundo, na fronteira, fala”. Por meio de nota, a pasta que comandou informou, ainda na quarta-feira (12), que tudo foi baseado em “numerosos inquéritos já instaurados que dão conta de uma série de fatos gravíssimos praticados contra crianças e adolescentes”, mas sem apresentar nenhuma evidência.

O que resulta dessa pregação toda são problemas para o governo e regozijo à oposição. Se a senadora eleita falou a verdade, prevaricou, pois teria conhecimento de crimes internacionais graves enquanto atuava como agente pública, deixando de denunciá-los. Para complicar, envolveu nas suas declarações o presidente Bolsonaro. Ao relatar que “abriu as gavetas”, também lançou suspeitas de acobertamento ou incompetência contra antigos titulares e servidores graduados. Neste caso, a mentira descarada ou o delírio fake no melhor estilo do movimento conspiratório QAnon são as alternativas menos danosas.

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