O conjunto de informações sobre o coronavírus, passados alguns meses de pandemia, parece ter sido estabelecido sob pilares socráticos. Uma das máximas filósofo Sócrates era “só sei que nada sei” – e essa frase foi cunhada com base na lógica de que o conhecimento pleno nunca será atingido, pois o conjunto de informações e conceitos no mundo é praticamente infinito. Assim, quanto maior a sapiência, mais se percebe o tamanho de sua ignorância diante das possibilidades ilimitadas de se acumular novos dados.
O preceito socrático parece ditar a dinâmica em torno da pandemia. Até agora, não se pode cravar com certeza qualquer tipo de conclusão sobre o Covid-19. Toda vez que surge uma informação incontestável, aparece uma exceção ou alguém para discordar daquele axioma. Até o uso de máscaras de proteção – algo básico, que parece ser unânime entre pessoas de todas idades – já foi questionado por alguns especialistas.
Aqueles que sacodem os argumentos da ciência para defender o isolamento social também são repreendidos por argumentos igualmente científicos de pessoas que preferem um ponto de vista oposto. Há um volume pequeno de consensos e muitas incertezas neste cenário e qualquer declaração feita hoje pode ter de ser desmentida em um futuro próximo.
É neste contexto que se insere uma fala do governador João Doria, proferida ontem: “Essa quarentena prossegue e prosseguirá enquanto não chegar a vacina e não tivermos a imunização de todos os brasileiros de São Paulo. Mais de 30 000 brasileiros de São Paulo não conseguiram se recuperar e perderam suas vidas. Não há razão para celebração de nenhuma ordem. Entendo que, após seis meses de confinamento, sobretudo os jovens, se sintam compelidos a se aglomerarem e não usarem máscaras. Mas não podem”.
A declaração de Doria foi provocada por um final de semana em que jovens se aglomeraram em bares e praias ficaram lotadas por conta do calor. Portanto, compreende-se a irritação do governador ao ver pessoas se comportando de forma arriscada durante uma ameaça séria à saúde pública.
Porém, é preciso discutir alguns pontos levantados por Doria.
O primeiro é entender exatamente o que o governador quis dizer por “quarentena”. Afinal, no Plano São Paulo, prevê-se a chamada fase azul, na qual há a liberação de todas as atividades com protocolos. Esse plano não menciona especificamente uma vacina, mas sinaliza uma volta à normalidade com limites. Tecnicamente falando, a fase azul pode pertencer à quarentena. Mas pode ser que Doria tenha insinuado um recrudescimento das regras. Não se sabe ao certo o que o governador quis dizer. Portanto, é preciso um esclarecimento.
Ao relacionar diretamente a quarentena à chegada de uma vacina, o governador adianta que as normas de exceção continuam pelo menos até o primeiro trimestre de 2021. Como se sabe, há bons prognósticos em relação à efetividade desses protótipos de vacinas, mas não existe uma certeza de que a população responderá de forma totalmente positiva a uma campanha de imunização.
Há ainda quem afirme que uma vacina será eficaz por um período curto de tempo, tendo uma validade semelhante à da Influenza, cujas mutações reduzem o prazo imunização.
Neste quadro, todos os “brasileiros de São Paulo” teriam de passar por diversas imunizações anuais para garantir uma segurança absoluta. Isso seria possível? Entramos aqui no terreno da especulação pura, pois a resposta pode ser tanto positiva como negativa.
Uma linha dos especialistas em saúde pública não acredita na tese da imunização de rebanho – e, a julgar pela argumentação de João Doria, os experts do governo estadual pensam dessa forma. Mas, e se houver um processo de imunização por parte das pessoas? Estaríamos aguardando uma vacinação à toa?
A atitude do governador coloca a autoridade estadual numa posição de superioridade sobre os cidadãos – na linha “se você não sabe cuidar de você, eu vou cuidar de você mesmo assim”. Toda vez, contudo, que o Estado passa a obrigar o cidadão a fazer aquilo que não quer as consequências podem ser ruins do ponto de vista político.
Uma coisa, porém, é louvável. Doria ficou bravo e saiu do muro, falando o que pensa de verdade. Romper com o ritual tucano e cravar uma posição sem ambiguidades, ressalte-se, é algo que precisa ser reconhecido. Só que, dessa vez, o governador pode ter dito algo que o povo não esteja querendo ouvir e terá de arcar com as consequências dessa atitude.
A cada dia que passa, fica claro que tanto Jair Bolsonaro como Doria estão com um olho na gestão do dia a dia e outro nas urnas de 2022. Para chegar ao pleito presidencial com fôlego, Doria terá de turbinar sua imagem de gestor e passar a entregar resultados incontestáveis em São Paulo – só assim que ele poderá reunir fortes argumentos para se contrapor a Bolsonaro, que embarcou num caminho populista.
Também é possível esperar, assim que a pandemia comece a arrefecer – os últimos números mostram que em agosto houve uma queda de 12 % no número de mortes – presidente e governador voltem a trocar farpas pela imprensa. A guerra de narrativas é importante na construção de índices de popularidade. Nesta disputa, não há espaço para meias-palavras ou figuras rebuscadas de linguagem – especialmente quando se tem como opositor um mandatário que é especialista em “lacradas” e não tem pudor algum em adotar o populismo para se reeleger.
P. S.: leio reportagem da Folha de S. Paulo que no Uruguai, o primeiro país da América Latina a legalizar a maconha, há queixas por parte dos usuários. Neste país, onde o consumo do entorpecente é controlado pela máquina estatal, há pouca oferta e a qualidade do produto é ruim. Ou seja, o Estado consegue ser mau gestor em todos os ramos nos quais atua. Até quando de distribui drogas legalizadas.