Um dos esportes mais praticados na política nacional é o chamado fogo amigo – as críticas e armadilhas que são disparadas não por oponentes, mas sim por aliados. Durante um bom tempo, essa prática ficou restrita ao Centro e à Esquerda, sendo algo bastante exercido no PSDB e no PT. Qual é a novidade de 2023? O fogo amigo se estendeu até à Direita.
O governador Tarcísio de Freitas, que pela importância de seu cargo se transformou em uma das maiores lideranças políticas do país, é vítima de ataques dos seus irmãos de armas. Ele foi eleito com votos centristas e direitistas. Mas agora sofre o ataque do núcleo bolsonarista, tendo como principais antagonistas o deputado Ricardo Salles e o ex-secretário de comunicação Fábio Wajngarten.
Muitas vezes, esse tipo de situação é motivado por aspectos pessoais. Isso ocorria muito entre os tucanos, na época em que o partido tinha muito cacique para pouco índio. No atual quadrante ideológico dos conservadores, contudo, isso também está ocorrendo. Tarcísio e Salles cultivaram uma discreta rivalidade durante o mandato de Jair Bolsonaro – e esse desentendimento se tornou conhecido dos eleitores após uma discussão pública sobre a reforma fiscal. Agora, conforme a eleição municipal se aproxima e o ex-ministro parece estar em campo oposto ao do governador paulista, a pendenga ficou totalmente escancarada.
O fogo amigo, em outras ocasiões, é motivado pela intransigência e pelo individualismo. É um caso típico de “farinha pouca, meu pirão primeiro”. O que ocorre com Tarcísio também acontece com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. E também ocorreu com os ex-ministros Antonio Palocci e Joaquim Levy.
Ontem, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o ex-ministro Pedro Malan disse o seguinte: “A condução econômica da política econômica nos primeiros meses do governo Lula, em 2003, também era questionada. Dentro do próprio governo, inclusive, era vista e descrita como uma simples – e indesejável – extensão da política econômica do governo anterior”.
Palocci foi fustigado por seus pares durante meses, até que caiu por, digamos, causas naturais. Mas o bombardeio que sofreu não teve razões puramente econômicas. Naquele ano de 2003, o então ministro era visto como um fiador da responsabilidade fiscal por empresários e banqueiros. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva entendia a importância deste papel e até estimulada a proximidade de Palocci com representantes do capital. Toda essa movimentação, obviamente, provocou uma forte ciumeira dentro da base de apoio e de vários petistas.
Quando os governos estão em sua fase inicial, alguns ministros começam a ganhar mais força que os outros. Deste desequilíbrio surgem disputas invisíveis – e quem está por baixo começa a se movimentar nos bastidores para reverter o jogo. O ministro da Casa Civil, Rui Costa (na imagem, com o presidente e o ministro da Fazenda), foi um dos políticos que tentou neutralizar a crescente importância de Haddad junto a Lula. Em algumas situações, diga-se, conseguiu prejudicar o colega, utilizando-se da ajuda de Gleisi Hoffman, presidente do PT.
O fogo amigo, no entanto, não é uma exclusividade do setor público. É o que mais corre em grandes empresas, especialmente multinacionais com chefias que estão passando por um processo de esvaziamento de poder. Nesses momentos, há executivos que esquecem o jogo em equipe e passam a trabalhar apenas para um único time – o deles.
Lee Iacocca é um exemplo de executivo talentoso que sofreu um número insano de bordoadas internas em seus tempos de Ford. Principal criador do Mustang, um dos carros mais vendidos e icônicos dos anos 1960, ele tinha tudo para ser CEO da empresa. Chegou a presidente da Ford (um cargo semelhante ao de Chief Operating Officer – COO) e, em 1978, foi demitido.
O Ford, naquele ano, teria um lucro de US$ 2 bilhões. Mas o problema de Iacocca não foi relacionado à performance da empresa. Henry Ford II, insuflado pelos demais executivos, começou a se desentender com Iacocca e deu ao segundo em comando o famoso bilhete azul.
Ocorre que, num cenário de fogo amigo, os dois lados (de quem atira e de quem é atingido) podem ter igual responsabilidade pelo desencadeamento dos ataques. No caso de Iacocca, ele – em pelo menos dois livros – reconheceu sua parcela de culpa no processo. “Eu esqueci de apertar mãos e de ser amigável”, disse ele. “Essa foi, para mim, uma lição muito importante sobre liderança”.
No atual cenário político brasileiro, dada a alta carga explosiva, não existe muita manobra para aproximações diplomáticas. Ou seja, uma atuação contemporizadora, como sugere Iacocca, parece estar fora de questão. O problema é que as divisões provocadas pelo fogo amigo são profundas e irrecuperáveis. Isso, em ano eleitoral, como será o de 2024, pode ser um tremendo tiro no pé.