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Neoconstitucionalismo à brasileira e o absolutismo judicial

Para que o Brasil não sucumba a uma justiça seletiva e autocrática, é urgente que o Legislativo reassuma seu papel constitucional e reforme o Judiciário

A Constituição Federal de 1988, com seus 250 artigos e extensas disposições transitórias, é uma das mais prolixas do mundo. No entanto, essa vastidão textual não se converte em um controle efetivo ou em contrapesos práticos ao poder judiciário no Brasil, especialmente diante do que temos observado nos últimos anos.

O caso do ministro Alexandre de Moraes, cujo papel na crise institucional recente foi revelado pelos Twitter Files, evidencia os riscos de um neoconstitucionalismo à brasileira, onde a aplicação do Direito se torna refém de uma hermenêutica criativa e elástica, favorecendo uma perigosa concentração de poder.

O neoconstitucionalismo como corrente jurídica tem raízes na resposta aos horrores do século XX, propondo que o Direito, sobretudo o Constitucional, não pode se limitar a uma simples aplicação técnica das normas, mas deve englobar valores e princípios fundamentais.

Inspirado por pensadores como Ronald Dworkin e Robert Alexy, o neoconstitucionalismo tem seus méritos e busca uma harmonia entre o Direito e a moral, entre as normas e os princípios. Alexy, por exemplo, desenvolveu a teoria da ponderação, segundo a qual princípios são mandados de otimização, devendo ser aplicados na medida do possível, de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas. Essa abordagem visa garantir que o Direito não seja apenas uma ferramenta de poder, mas um instrumento de justiça. Esse cenário contrasta fortemente com linhas mais restritivas, como a teoria da moldura jurídica de Hans Kelsen, que preconiza que o juiz deve atuar dentro dos limites estabelecidos pela norma, interpretando a lei apenas dentro da “moldura” delineada pelo legislador.

No entanto, ao se combinar com a vastidão e complexidade da Constituição brasileira, o neoconstitucionalismo se torna uma faca de dois gumes. Por um lado, oferece uma resposta à tese da necessidade de um sistema jurídico flexível, capaz de adaptar-se às demandas sociais contemporâneas. Por outro, os inumeráveis princípios constitucionais somados a uma cultura jurídica autoritária abrem espaço para interpretações judiciais desmedidas que, em alguns casos, extrapolam os limites da própria Constituição, substituindo a norma escrita por uma concretização seletiva e subjetiva de princípios.

A questão torna-se ainda mais crítica quando o Judiciário se arroga ao papel de reformador ou ativista. É o caso da regulação das redes sociais, quando o Legislativo deliberadamente optou por não alterar a legislação em vigor, o Marco Civil da Internet, e adicionalmente rejeitou o PL 2630/2020.

Essa escolha não pode, de forma alguma, ser entendida como uma omissão que autorize o Judiciário a inovar. Pelo contrário. Foi uma decisão soberana do Congresso Nacional não alterar a regulamentação em vigor.  No entanto, o STF decidiu: pautará a ação de inconstitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet, coração do regime de responsabilidade nas redes.

O neoconstitucionalismo à brasileira atingiu nesta semana seu ápice, ou melhor, seu declínio, quando os ministros da corte suprema desprezaram as regras e sequer se deram ao trabalho de construir argumentação baseada na legislação vigente. Foi o caso — na questão do banimento do X —, do bloqueio dos bens da Starlink, ferindo gravemente as regras de separação patrimonial. Há, portanto, um evidente desvio de função que atenta contra o próprio Estado Democrático de Direito.

Adicionalmente, o banimento do X atentou contra o Direito Internacional em vários quesitos: (i) passivos não podem ser transferidos de uma entidade para outra, exceto em casos especialíssimos, (ii) não é permitida punição discriminatória, que ocorreu contra o X por não ter apontado um representante legal em 24h, ao passo em que centenas de companhias estrangeiras de internet são usadas por brasileiros sem importunação, mesmo sem indicar um representante legal, (iii) os acionistas da Starlink que não possuem ligação alguma com o X foram indevidamente punidos, sem devido processo (Elon Musk detém apenas 40% das ações da SpaceX, controladora da Starlink). 

O exemplo de neoconstitucionalismo de Alexandre de Moraes é emblemático. Suas decisões monocráticas, sem a devida consulta ou respaldo legislativo, e seu uso extensivo de punições no âmbito do inquérito das fake news, revelam um Judiciário que se comporta como detentor do poder absoluto. As revelações do Twittergate reforçam a percepção de que estamos diante de uma forma inovadora de autoritarismo do século XXI, onde o poder judicial se utiliza de um poder irrestrito de interpretação e aplicação constitucional para moldar o cenário político e social segundo seus próprios critérios.

O neoconstitucionalismo, como aplicado no Brasil, traz o risco de nos transformar em um país onde os juízes sejam legisladores de fato, capazes de criar direitos e impor deveres que, em última análise, deveriam ser fruto de um processo democrático no Legislativo. Em vez de promover uma justiça equitativa e equilibrada, o neoconstitucionalismo à brasileira de 2019 a 2024, sem os devidos contrapesos, pode vir a ser lembrado como a era obscura em que o Judiciário se transformou no maior dos poderes, em detrimento da democracia.

Para que o Brasil não sucumba a uma justiça seletiva e autocrática, é urgente que o Legislativo reassuma seu papel constitucional e reforme o Judiciário. Afinal, quando a mais alta corte desconsidera o próprio ordenamento, a quem recorreremos? Ao bispo? Ao Musk? Ou nos resta aceitar que o Estado Democrático de Direito, bem como o próprio Direito, foi transformado em mera abstração?

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Por Helio Beltrão e Anthony Geller

Publicado originalmente em: https://encurtador.com.br/FQqCg

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