As eleições brasileiras tinham, até ontem, duas tradições. A primeira: o candidato vencedor no primeiro turno nunca tinha sido derrotado na segunda etapa do pleito. A segunda: o presidente em exercício sempre obteve a reeleição. Portanto, as eleições de 2022 iriam inovar em um desses dois aspectos. Valeu a primeira tradição: Luiz Inácio Lula da Silva venceu os dois turnos e derrotou o presidente Jair Bolsonaro.
A vantagem inicial de Lula, de seis milhões de votos, foi reduzida a 2,1 milhões de sufrágios (Bolsonaro teve menos votos que esperava em São Paulo e Rio Grande do Sul e foi derrotado – por pouco – em Minas Gerais). No final, o placar (1,8 ponto percentual de diferença entre os candidatos) mostra o quanto o Brasil está dividido do ponto de vista político.
Os factoides envolvendo Roberto Jefferson e Carla Zambelli podem ter afetado o apoio de Bolsonaro na reta final – mas jamais teremos certeza a respeito disso. Uma coisa, porém, é certa. Zambelli e Jefferson levaram o ditado “quem tem amigos como esses não precisa de inimigos” a um outro nível. Do ponto de vista matemático, porém, o atual presidente teria de ter obtido mais votos em São Paulo e em Minas Gerais. Seu maior problema foi ter empacado no voto feminino e entre as classes mais baixas.
Um parêntese sobre a eleição estadual paulista. Os candidatos a governador tiveram um percentual muito parecido com os postulantes à presidência no estado. Mas Tarcisio obteve 736 000 a menos que Bolsonaro e Haddad atingiu uma somatória 611 000 inferior à de Lula. Será que os eleitores pressionaram os números errados ou votaram em branco/nulo para presidente? Saberemos quando o relatório final do Tribunal Superior Eleitoral for divulgado.
Voltando ao pleito federal. Uma vez que a vitória de Lula se tornou oficial, os empresários se dividiram em dois grupos: os inconformados e os pragmáticos. Os primeiros se queixaram do passado de corrupção dos governos do PT, uma ameaça que paira no horizonte. Já os pragmáticos lamentaram (ou não) o resultado, mas disseram que a vida continua – e que vão continuar a investir e tocar seus empreendimentos.
Em 2002, houve um certo choque inicial quando Lula venceu. Mas, aos poucos, o empresariado passou a deixar suas desconfianças de lado, especialmente porque o tripé econômico que tinha sido introduzido com o Plano Real foi mantido. O dólar caiu e os investimentos foram retomados.
Mas, vinte anos depois, o que diferencia o Brasil de antes e o país de agora? O que faz aquele Lula diferente do atual?
Em primeiro lugar, percebe-se um receio muito claro – o de que os processos de corrupção vistos no passado sejam repetidos. Naquele pleito, ainda, a vitória petista foi bastante elástica: 61,27% contra 38,73% de José Serra. Por fim, tivemos a administração de Dilma Rousseff, que implodiu o tripé econômico, aumentou o déficit público e mudou regras do jogo, provocando insegurança jurídica.
Portanto, há uma preocupação legítima sobre se a nova gestão será leniente com a corrupção, terá governabilidade (diante de um Congresso bastante conservador e alinhado com Bolsonaro) ou desrespeitará a gestão macroeconômica ortodoxa.
Além disso, existe também uma consternação em relação ao rombo fiscal de 2023 (parte por conta da PEC kamikaze bolsonarista e parte pelas promessas de campanha de Lula). O ex-ministro Henrique Meirelles, que foi presidente do Banco Central nos dois primeiros mandatos petistas, já se manifestou sobre a necessidade de um waiver de R$ 100 bilhões sobre o teto dos gastos públicos (um mecanismo de controle das contas estatais inventado por ele durante a presidência e Michel Temer, diga-se). Além disso, espera-se uma reforma tributária que vai ampliar os impostos pagos pelos mais ricos (embora isso também fosse esperado sob a batuta de Paulo Guedes na economia).
Como a corrupção será combatida no governo Lula?
Esse será um ponto importantíssimo nessa gestão. A administração será escrutinada e investigada de até o último fio de cabelo. Ministério Público e Polícia Federal deverão atual diligentemente em todos os ministérios e também na Petrobras, que foi o maior foco de propinas durante os anos do PT.
E quanto às reformas e às regras já estabelecidas em vários mercados? Ainda não se sabe como o próximo governo atuará neste quesito, mas teme-se o que ocorreu durante os anos Dilma. Setores como o elétrico, por exemplo, enfrentaram um tremendo retrocesso em investimentos porque a então presidente baixou as contas de energia por decreto.
A pergunta de um milhão de dólares é: quem será o ministro da Fazenda de Lula? Como bem lembrou o presidente eleito, o próximo governo não será do PT, mas sim de uma frente ampla. Mas, em seu discurso como mandatário eleito, Lula estava cercado de gente da velha guarda petista, como o deputado José Guimarães (aquele cujo assessor foi pego com dólares na cueca) e Aloizio Mercadante, que é visto com reservas pelo mercado financeiro.
Na frente ampla de apoio na campanha, que vai de Guilherme Boulos a João Amoêdo, destaca-se o papel do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, citado pessoalmente várias vezes nos discursos de Lula. Ele deverá ser uma voz moderada que pode conter arroubos esquerdistas mais extremos e servir de ponte entre empresários e governo.
Como será o convívio de uma administração petista com um Congresso conservador? O presidente eleito é um conhecido encantador de serpentes. E conhece como poucos o toma-lá-dá-cá político. Pode reverter as expectativas rapidamente e conseguir trazer o Centrão para seu lado. O próprio Arthur Lira, presidente da Câmara e aliado de Bolsonaro, foi uma das primeiras autoridades a reconhecer a vitória do petista e falou em desarmar os espíritos e pacificar o país.
O Brasil vai virar uma Venezuela ou Argentina sob Lula?
Como Lula foi eleito a partir da união de várias forças políticas, é de se esperar que o tom do novo governo não seja totalmente esquerdista e incorpore pinceladas centristas. O ministério da Economia, que hoje concentra os poderes das antigas pastas da Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio, deverá voltar ao formato anterior. Uma dica da tônica da administração que começa em 2023 será a composição destes três ministérios. De qualquer modo, temos de lembrar o tamanho do mercado consumidor interno no Brasil e a força de sua economia. Seria preciso muita incompetência para tornar o Brasil uma nova Venezuela. Mas, vamos ver o que vem por aí.
Como será o conservadorismo daqui para frente? Jair Bolsonaro emerge como o grande líder da oposição, embora não tenha mandato para garantir a ele uma vitrine pública pelos próximos quatro anos. Mas teremos também duas grandes lideranças que devem se destacar: os governadores Tarcísio Freitas e Romeu Zema. Tarcísio já disse a aliados que pretende tentar a reeleição, mas é um nome que pode ser lembrado em 2026, especialmente se fizer uma boa gestão. Já Zema termina sua segunda administração daqui a quatro anos. Ele pode unir o conservadorismo nas próximas eleições e trazer os votos do centro que faltaram em 2022.
Esse deverá ser o último mandato de Lula. Quem será o seu herdeiro político? Dois nomes em potencial estão no Congresso: Guilherme Boulos e André Janones. Este último surge como um dos grandes articuladores da campanha vitoriosa do PT e ganhou um cacife razoável junto a Lula. Fernando Haddad, apesar da derrota na corrida pelo governo paulista, deve ser contemplado com um ministério e igualmente poderá ser um herdeiro de Lula. Temos ainda dois outros nomes que contam com a chancela moderada: Geraldo Alckmin e Simone Tebet. Sem Alckmin para fazer uma espécie de embaixada junto aos empresários e Tebet para comandar palanques por todo o Brasil, essa vitória não teria sido possível.