O jornalista Octavio Frias Filho, que recentemente deixou este mundo, escreveu em 1993 uma peça cujo título seria extremamente atual em tempos de pandemia. O texto de chamava “Rancor” e mostrava os duelos intelectuais entre um crítico de arte e seu pupilo. Frias, na época diretor de redação do jornal Folha de S. Paulo, era um sujeito introvertido e de temperamento difícil. Seus detratores diziam que a própria personalidade do autor tinha servido de inspiração para o epíteto do espetáculo.
O tema central desta encenação é algo onipresente nos dias de hoje. Não é exatamente um fenômeno de última hora, mas algo que vinha crescendo aos poucos e explodiu recentemente. Na política, já estava em pauta desde os tempos de Dilma Rousseff. O rancor, desde então, já ruminava nas mentes de personagens mais radicais da esquerda e da direita. Está, por exemplo, no caráter daqueles que formam hoje o chamado Gabinete do Ódio e de muitos blogueiros que defendiam com afinco a gestão de Dilma nos dias de outrora. Uma ira infundada está, no fundo, nas duas faces de uma mesma moeda.
Com a ascensão de Jair Bolsonaro durante a eleição de 2018, os ânimos se exaltaram e o país foi dividido. Como consequência, brigas homéricas surgiram em todos os rincões do Brasil, contaminando até relações pessoais, separando pessoas próximas. Um meme famoso daqueles dias dizia: “vou passar o Natal com Bolsonaro porque briguei com toda a minha família”.
Veio a eleição. Esperava-se que os vencedores esquecessem o rancor contra seus inimigos de praxe: a esquerda e aqueles que defendem comportamentos nada conservadores. Não foi o que ocorreu. Começou algo inédito, uma espécie de mimimi de vencedor. E o moto contínuo dos rancorosos entrou em velocidade máxima, pois do outro lado também foi-se cultivando o ressentimento.
É quase impossível, a essa altura, descobrir quem começou primeiro a onda de rancores. Talvez saber isso, diga-se, seja insignificante. O fato é que os ressentidos, de todos os lados, passaram a ter uma posição de destaque no cenário político. O restante da sociedade veio atrás. E as discussões nas redes sociais foram contaminadas por melindres. Todos, em maior ou menor grau, se sentem ofendidos com algo que leem ao longo do dia. Alguns relevam, outros brigam e pouquíssimos mudam de ideia ao ler algum post ofensivo.
A energia pesada pode ser medida, por exemplo, em várias falas do famoso vídeo que registra a reunião ministerial realizada no dia 22 de abril. Mas as reações ao vídeo também são cobertas de profundo sentimento negativo – tanto as que atacam os protagonistas da gravação como as que os defendem.
Como as pessoas conseguem lidar com tanta animosidade? Um mistério.
Ao contrário de muitos sentimentos, o ressentimento é algo que parece não se esgotar quando é extravasado. Botá-lo para fora parece não gerar alívio. O rancor, nesse sentido, parece ser um poço sem fundo, inundando a alma e contaminando tudo o que está à volta.
Um bom exemplo disso é aquela sessão do Supremo Tribunal Federal, na qual o ministro Gilmar Mendes dizia o seguinte: “ah, agora vou dar uma de esperto e conseguir a decisão do aborto, de preferência na turma com dois, três ministros”. O colega, Luís Roberto Barroso, não se segurou e despejou uma das maiores duras já presenciadas nos anais do STF: “Me deixa de fora desse seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado. É uma absurdo V. Exa. aqui fazer um comício, cheio de ofensas, grosserias. V. Exa. não consegue articular um argumento. Já ofendeu a presidente, já ofendeu o ministro Fux, agora chegou a mim. A vida para V. Exa. é ofender as pessoas. Não tem nenhuma ideia. Nenhuma. Só ofende as pessoas. Qual é sua ideia? Qual é sua proposta? Nenhuma! É bílis, ódio, mau sentimento, mal secreto, uma coisa horrível. V. Exa. nos envergonha, V. Exa é uma desonra para o tribunal”.
O ministro Barroso definiu como poucos o comportamento de uma pessoa rancorosa – uma conduta que, por sinal, se encontra paradoxalmente em muitos brasileiros que têm total aversão à Alta Corte do país (não vamos generalizar, evidentemente). Uma atitude que igualmente está presente naqueles que fazem carreatas protestando contra o isolamento social. Ou nas mulheres seminuas que defecam em público para protestar. Ou no coração dos que criam espetáculos artísticos apenas para chocar os mais conservadores. E também em celerados que ficam perseguindo jornalistas em locais públicos.
Como se pode ver, rancor não é uma exclusividade da direita ou da esquerda. Não tem a ver com alguém ser progressista ou conservador. O ressentimento é responsável pela falta da leveza na alma. Decreta a ditadura da intolerância. E provoca a incapacidade de exercer o perdão. A conclusão, assim, é inevitável: conviver com pessoas assim faz mal.
Voltando à peça de Octavio Frias Filho. Num determinado momento do espetáculo, um dos personagens diz o seguinte: “Ninguém mais presta atenção, o mundo está quieto na sua pequena atividade inútil, mas isso agora, justo agora, só torna ainda mais turbulento e impaciente um coração como o meu”. Nunca pensei que fosse me identificar tanto com um texto do criador do atual projeto da Folha de S. Paulo. Pensando bem, agora fiquei assustado. Será que isso faz de mim… uma pessoa rancorosa?