O encontro de figuras públicas com esposa condenada de líder do Comando Vermelho releva despreparo de autoridades na hora de selecionar quem podem receber
A revelação sobre reuniões e selfies de Luciane Barbosa Farias com os deputados André Janones (Avante-MG), Guilherme Boulos (PSOL-SP) e assessores do Ministério da Justiça constrangeu o governo e alertou para o convívio fugaz e traiçoeiro com figuras duvidosas que tentam orbitar o poder em busca de prestígio ou alguma oportunidade. Desconhecida até esta segunda-feira (13), quando identificada em reportagem de “O Estado de S. Paulo”, Luciane é esposa de Clemilson dos Santos Farias, o Tio Patinhas, líder do Comando Vermelho no estado do Amazonas.
Desde outubro ele cumpre 31 anos e sete meses de prisão por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Já Luciane pegou 10 anos por movimentar o dinheiro do criminoso, mas responde em liberdade amparada por uma liminar. Seu papel lhe conferiu o apelido de Dama do Tráfico do Amazonas. É ignorado se a condenada esteve em Brasília com autorização da Justiça.
A divulgação de suas agendas na capital federal levantou suspeitas imediatas sobre negociações obscuras, algo compreensível diante da possibilidade de associação de qualquer político com chefões do crime. Em pouco tempo a oposição acionou suas baterias, acusando o ministro da Justiça Flavio Dino e os parlamentares. Nesta terça-feira (14), o deputado Felipe Barros (PL-PR) afirmou que reúne assinaturas para abrir um processo de impeachment contra o ministro da Justiça, Flavio Dino. Kim Kataguiri (União-SP) quer saber do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, o que ela anda fazendo em Brasília.
Pudera, em menos de três meses Luciane foi recebida duas vezes na Justiça. Imagens compartilhadas nas redes sociais também mostram a companheira de Tio Patinhas ao lado de Janones, Boulos e Daiana Santos (PCdoB-RS). Tudo muito fortuito, menos para Luciane, ao que parece.
Direitos humanos
Nas postagens, Luciane se mostra uma defensora dos direitos humanos que preside a Associação Instituto Liberdade do Amazonas (ILA), uma ONG dedicada a defender os direitos dos presos. Na postagem com Janones, escreveu platitudes: “A força do direito deve superar o direito da força”, “O fim do Direito não é abolir nem restringir, mas preservar e ampliar a liberdade”, “A essência dos direitos humanos é (sic) direito a ter direitos” e “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça a à Justiça em qualquer parte”.
Até aí tudo bem. É de seu interesse que o companheiro seja bem-tratado e que provavelmente ela aprecie acomodações melhores que as mostradas no sistema penitenciário amazonense, que volta e meia é conflagrado por disputas entre facções. E se não fosse o suficiente, há a suspeita de que a ILA seja financiada com recursos do crime, em especial o tráfico de drogas, conforme investigação em curso da Polícia Civil do Amazonas. Janones repercutiu a postagem da visitante na segunda-feira (13), antes de saber do rolo.
Fora da agenda
O que já era ruim fica pior. A reportagem do Estadão indica que a senhora Tio Patinhas conversou com o secretário nacional de Assuntos Legislativos do Ministério da da Justiça, Elias Vaz, próximo do titular da pasta Flavio Dino. Ela também esteve com Paula Cristina da Silva Godoy, ouvidora nacional de serviços penais, e Sandro Abel de Sousa Barradas, diretor de inteligência penitenciária.
O encontro com Vaz passaria batido, já que sua presença não constava na agenda oficial – o que é irregular -, mas foi postado em redes. A mancada deixou Dino furioso. Vaz admitiu que deveria ter mandado checar as credenciais dos visitantes. O escândalo a poucos metros da sala do ministro forçou a mudança no protocolos de acesso ao prédio e pode deixar Vaz na geladeira.
De acordo com quem atua na pasta, a comitiva foi recebida na cúpula do ministério na base da “boa fé”, levada por Janira Rocha, ex-deputada estadual do Rio de Janeiro pelo PSOL e vice-presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim-RJ). É preciso saber como Luciane entrou no grupo.
Barbeiragens
Flávio Dino deixou claro que a reunião da primeira-dama do Comando Vermelho de Manaus não foi com ele. Então reclamou que bolsonaristas estariam tentando colocá-lo numa reunião de que não participou. Mas o fato é que o Ministério da Justiça se mostrou incapaz de identificar uma integrante condenada do crime organizado em uma reunião oficial. Esse amadorismo institucional tão brasileiro fica ainda mais evidente quando é lembrado que Dino enfrenta uma batalha contra o crime organizado, com crises continuadas no Rio de Janeiro e rebeliões em presídios de tempos em tempos. Seja por ação ou omissão, não há desculpa.
Guilherme Boulos se justificou afirmando que a Câmara é a “casa do povo” e que ele atende a todos, “sem distinção”, nos corredores do legislativo. No entanto, a alegação de desconhecimento sobre o histórico penal de Luciane levanta dúvidas sobre a diligência dos políticos ao receberem em seus gabinetes. É razoável supor que uma rápida pesquisa nas redes poderia revelar informações cruciais. Algo, aliás, que o deputado sempre fez quando em campanha.
À CNN Brasil, nesta terça-feira (14), Luciane ignorou sua condenação e disse que é “criminalizada” por ser casada com um preso. A Dama do Tráfico alegou não fazer parte de nenhuma facção criminosa. Resta saber se o o intenso rolê que praticou não lhe renderá dissabores adicionais à sua condenação como integrante do Comando Vermelho. O poder não costuma tolerar essas desfeitas em seus saguões e corredores.