O Supremo definiu, nesta semana, que os órgãos de imprensa podem ser punidos por declarações de entrevistados contra terceiros. Isso será possível se “à época da divulgação houver indícios concretos da falsidade da imputação”, no entendimento de nove juízes. Votaram contra essa tese apenas os aposentados Marco Aurélio Mello e Rosa Weber.
O cerne da questão está, para variar, em um texto vago, que permite inúmeras e criativas interpretações. O termo “indícios concretos” é extremamente subjetivo. O que pode ser concreto para um não é para outro. Além disso, ao julgar um fato do passado, o magistrado estará contaminado com as informações do presente.
Essa barafunda tem a ver com a famosa história do ovo de Colombo, que provavelmente é uma lenda antiga. Como se sabe, dizem que, durante uma recepção social à alta sociedade espanhola, alguns convidados menosprezaram a conquista do navegador genovês, que conseguiu chegar ao continente americano em 1492. Cristóvão Colombo, então, desafiou-os a colocar um ovo é pé. Ninguém conseguiu, apesar das inúmeras tentativas. Ele, então, apertou a base do ovo contra a mesa, quebrando-a, e deixou a casca em pé. Colombo olhou para os convidados e disse: “Depois que alguém faz primeiro uma coisa, ela se torna fácil. O difícil é fazê-la pela primeira vez”.
Os convidados da recepção espanhola menosprezaram o feito de Colombo pois sabiam que era possível realizar a travessia atlântica, enquanto o navegador apostou em seus estudos e arriscou tudo. Com o jornalismo pode ser assim: não se sabe tudo sobre um caso, mas arrisca-se dar a voz a alguém que deseja denunciar um escândalo. O caso pode ser destruído, mais tarde, por outras evidências. Mas, diante disso, se pode acusar os veículos de negligência?
O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, insiste que essa regra só vale para casos grotescos e reforçam a tese das informações disponíveis “à época da divulgação”. Diante do que vimos recentemente na Alta Corte, porém, que reabriu casos tributários julgados no passado, essa garantia não parece ser muito firme.
O fato é que os dirigentes de órgãos jornalísticos vão ficar com a pulga na orelha antes de publicar uma denúncia. Vão pedir mais evidências e tornar a matéria mais sólida – e isso até seria bom. Mas os jornalistas vão demorar mais para publicar seus furos. Isso pode mexer com o funcionamento das redações.
Lembro de uma reportagem de capa da revista Época que estava baseada em uma gravação de vídeo obtida junto a um senador da República e ao Ministério Pùblico. Tínhamos de passar a fita pelo crivo de um especialista para saber se o conteúdo havia sido editado ou manipulado. Ficamos uma semana esperando o veredito. Foi o preço a pagar pelo furo.
Mas e quando os veículos publicam algo que está no relatório da Polícia Federal, por exemplo, e a informação está errada? No caso da Máfia dos Sanguessugas – uma quadrilha que desviava recursos e dinheiro do ministério da Saúde – o nome de um determinado servidor público foi colocado pela PF entre os acusados. Publicamos a informação, que se mostrou errada mais tarde. Em função disso, ordenei que fizéssemos uma reportagem de 3 páginas para que o funcionário público em questão pudesse dar sua versão e limpar o seu nome.
A Folha de S. Paulo de ontem questiona o que poderia ocorrer com a publicação da entrevista que gerou o escândalo do Mensalão, dada pelo então deputado Roberto Jefferson, sem apresentar uma única prova. Ou a capa da revista Veja com Pedro Collor, descortinando a corrupção no governo do irmão, Fernando, coordenada por Paulo César Farias.
Toda essa preocupação não quer dizer que necessariamente todos os veículos sejam imparciais e respeitem o senso comum na hora de divulgar notícias e comentários. Durante as eleições americanas de 2020, por exemplo, a Fox News insistiu em comentar que as urnas eletrônicas utilizadas em alguns estados eram facilmente manipuláveis e seriam utilizadas para fraudar o pleito. Um dos fabricantes destes equipamentos, a Dominion, entrou com um processo contra a rede de US$ 1,7 bilhão. Em abril, porém, a Fox fez um acordo e pagou US$ 787,5 milhões à empresa. Outro processo contra a Fox, de um concorrente da Dominion, a Smartmatic, continua tramitando na Justiça.
Isso mostra que há gente mal-intencionada na imprensa, que pode ser atingida pelo entendimento do STF. Mas, na prática, essa votação vai reprimir a ousadia dos repórteres e isso poderá refletir na liberdade de imprensa daqui para frente. Afinal, existe algo mais poderoso do que a censura em si para reduzir o ímpeto na busca por informações: a autocensura que pode partir dos próprios jornalistas.