Nos anos 1980, os fechamentos da revista Veja eram intermináveis. Enfrentávamos duas longas noites. A de quinta-feira, com uma jornada que ia pelo menos até uma da manhã, e a de sexta-feira, que literalmente não tinha hora para acabar. Cheguei a sair do prédio da Editora Abril várias vezes com o sol nascendo. O fechamento demorava muito por conta da falta de tecnologia. As reportagens, redigidas em máquinas de escrever, tinham de ser redigitadas em computadores rudimentares, ligados à gráfica, e os autores precisavam esperar esse processo para garantir que a matéria tinha sido de fato concluída. Esse sistema criava enormes hiatos, nos quais os jornalistas conversavam, trocavam ideias e ouviam histórias.
Nessas madrugadas, tive o privilégio de conviver com o diretor adjunto de redação, Elio Gaspari, um dos maiores jornalistas que já vi em ação. Numa dessas noites intermináveis, ouvi uma frase que me veio à cabeça ao analisar o conteúdo do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril. Naquela longínqua madrugada de 1988, estávamos discutindo uma reportagem baseada na transcrição de uma conversa grampeada, que publicaríamos naquele final de semana. Quando fiz algum comentário sobre o teor da conversa, Elio ajeitou os óculos e disse: “Não julgue. Ninguém resiste a um ‘dragão’”.
‘Dragão’, na linguagem dos arapongas do governo militar, era a transcrição das gravações feitas de conversas privadas e grampeadas. Elio queria dizer que, em caráter privado, as pessoas se soltam e mostram uma face que não é para consumo público. E fazem o que todo mundo faz: usam termos chulos, manifestam preconceitos e demonstram toques de maldade. Isso, embora seja condenável, é comum. Ocorre em muitas reuniões de trabalho no setor privado. Por que seria diferente na esfera pública? Em um governo como o de Jair Bolsonaro?
Vamos deixar o conteúdo do vídeo de lado por um instante. No mundo privado, as reuniões nas quais são definidas estratégias contra concorrentes são pautadas por expressões diplomáticas e educadas? Tenho certeza que não. É verdade que os personagens da gravação representam o governo e seria de se esperar uma certa liturgia por parte de ministros. O excesso de escracho e linguagem vulgar, sem dúvida, pode ser chocante. Mas alguém esperaria algo diferente vindo de certos personagens que estavam naquela sala?
Por um lado, os defensores de Sergio Moro viram na transcrição do vídeo uma confirmação do que disse o ex-ministro. De outro, contudo, houve a impressão de que não existia nenhuma bomba escondida no conteúdo divulgado. Como Bolsonaro usou a palavra “segurança” para basear o que seria uma interferência do presidente na Polícia Federal, haverá uma discussão interminável sobre o tema – algo que o mercado financeiro já havia previsto e, para usar um jargão dos especialistas, “precificado”.
A reação inicial dos operadores das bolsas de valores foi de otimismo. Tanto é que o chamado “after Market” da B3 apontou uma alta significativa no início da noite de sexta-feira (21). Se essa tendência será mantida na segunda-feira, na abertura do pregão, isso já é outra história.
Alguns observadores acharam até que Bolsonaro sairia ganhando com a divulgação do vídeo junto às camadas mais pobres da população. Junto à boa parte do eleitorado anti-petista, o chamado “bolsonarista Nutella”, no entanto, a performance de Bolsonaro é mais um fator de afastamento. Pode estimular esses eleitores a buscar uma solução mais alinhada ao centro no próximo pleito. Mas ainda é cedo para fazer previsões. Faltam mais de dois anos para as próximas eleições presidenciais. Uma eternidade para nós, brasileiros.