O xadrez engendrado pela crise na Ucrânia é uma reafirmação da hegemonia regional russa que as democracias liberais precisam entender olhando para a história. Não há mocinhos nesse jogo
Na lógica geopolítica vigente desde o czarismo, a Ucrânia faz parte da Rússia de modo praticamente indissociável. E o resto seriam percalços históricos temporários. Ainda que os ucranianos tenham discordado em diversas oportunidades, não haveria Rússia sem eles, pois foi ali que nasceu se expandiu para leste a Rússia de Kiev, o primeiro reino da qual o país governado por Vladimir Putin é derivado e se julga herdeiro direto.
É com essa narrativa que se vale de sentimentos nacionalistas violentos e parcialismos históricos para resgatar o orgulho do passado russo, seja sob a brutalidade dos czares ou do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), que Putin tenta restabelecer o papel de potência de seu país, enquanto enfrenta críticas internas ao seu autoritarismo, desempenho débil no combate à pandemia e perda de popularidade. Só que pressionado externamente e alvo de sanções dos Estados Unidos e da Europa, em vez de seguir ameaçando invadir a Ucrânia, adotou uma posição de força disfarçada de recuo. Em vez de briga aberta, passou a reconhecer as repúblicas separatistas pró-Rússia de Donetsk e Luhansk, bem na sua fronteira, em parte da bacia do rio Don (Donbass). Ali vivem 4 milhões dos 42 milhões de habitantes da Ucrânia. De forte influência russa, ali também se concentra a maior parte da indústria pesada do país. Perder Donbass traria severas consequências econômicas aos ucranianos.
Cercado pela Otan
O apoio de Putin aos separatistas praticamente anuncia uma nova Crimeia, anexada em 2014, durante um período de instabilidade que terminou com a deposição do presidente Viktor Yanukovitch (2010-2014), um pró-russo que rejeitou a aproximação com a União Europeia (UE) e reprimiu com força letal quem foi às ruas dar o contra. Responsabilizado, Yanukovitch hoje vive exilado na Rússia, que o considera vítima de um golpe de estado. Já seu antecessor, Viktor Yushchenko, que liderou os protestos contra a corrupção e fraudes eleitorais na Revolução Laranja (2004-2005, na imagem), quase morreu envenenado antes de tomar posse (2005-2010). O atentado teria partido do Kremlin.
Mais do que o desejo de escapar da esfera de Moscou, a UE é a chave dessa questão. Ainda que a Ucrânia não seja primordial para a existência da Rússia contemporânea, sua paulatina e intermitente aproximação das democracias ocidentais é vista como um risco. Signatárias da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar criada para fazer frente aos soviéticos em caso de invasão da Europa Ocidental, as democracias encamparam os satélites do Leste a partir da queda do Muro de Berlim, em 1989. Além de Bulgária, Hungria, Eslováquia, Polônia, República Tcheca e Romênia, também entraram na Otan os desmembrados da antiga Iugoslávia e as ex-repúblicas bálticas da URSS, Estônia, Letônia e Lituânia. Junto com a Ucrânia, também estão próximos do pacto como parceiros individuais Armênia, Azerbaijão, Bósnia, Geórgia e até Moldávia e Cazaquistão, costumeiramente mais submissos a Moscou. Os russos estão bloqueados por velhos inimigos que possuem ogivas nucleares.
Foi obra de Lênin – Stalin, Hitler, Nicolau II
Por isso, quando a Ucrânia reafirmou a possibilidade de participar dos mercados da UE ao preço de sua entrada na aliança militar, a possibilidade de manter tropas e mísseis dos EUA e Reino Unido a 530 quilômetros de Moscou fez a Rússia criar a crise atual. Putin defende a independência das repúblicas de Donbass como Hitler defendeu a anexação dos Sudetos, região germanófona da antiga Tchecoslováquia – favor assistir a ficção “Munique: no limite da guerra”, no Netflix -, como se fossem parte de um espaço vital russo. Seus discursos reescrevem a história, afirmando que a Ucrânia foi criada de fato por Lênin. E é aí que está outro ponto delicado. A região foi o palco dos grandes conflitos russos: Guerra da Crimeia (1853-1860), Primeira Guerra (1914-1918), Guerra Civil Russa (1917-1923) e Segunda Guerra (1941-1945 para eles). Financiados por quase todos os países europeus, os desorganizados nacionalistas ucranianos foram massacrados por Lênin no conflito que se seguiu à Revolução de Outubro (1917). Depois, Stalin provocou a fome do Holodomor (1932-1933), que matou mais 3 milhões para calar qualquer resistência restante. Assim, não foi sem entusiasmo que em 1941 os alemães foram recebidos como libertadores enganosos no oeste da Ucrânia, onde até hoje se concentra a parcela da população mais contrária aos russos. Já na hoje capital Kiev morreram 600 mil soldados soviéticos de todas as etnias.
A tensão atual revive a gênese da Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962, com os russos agora ocupando o lugar dos americanos e dos soviéticos – dependendo do momento e do ponto de vista. Ninguém quer ter armas apontadas para o seu quintal. Por sorte, a solução dada àquela situação muito mais perigosa mostrou que existem saídas pacíficas – favor prestar atenção ao início e ao final do filme para TV “13 dias que abalaram o mundo” (2000, de Oliver Stone). É preciso lembrar que artefatos atômicos foram parar a 145 quilômetros da Flórida depois que os soviéticos descobriram que havia mísseis nucleares americanos instalados na Turquia, bem diante das residências de verão dos líderes do Politburo, na Riviera Soviética instalada na costa georgiana do Mar Negro.
Respostas de 2
O biscoito fino que adoro consumir em MR
É André, já dizia o Beto Carlo:
“Não importam os motivos da guerra
A paz ainda é mais importante que eles”
Esta frase vive nos cabelos encaracolados
Das cucas maravilhosas
Mas se perdeu no labirinto
Dos pensamentos poluídos pela falta de amor
Muita gente não ouviu porque não quis ouvir
Eles estão surdos